quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Dr. Camilo

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Ainda guardo os ‘Montes Pintados‘, o vinho que homenageia o seu pai, outro homem grande, o vinho que me ofereceu naquela tarde suave em que o visitei e em que conheci a Casa de Santo Isidro – para mim já tão familiar do carimbo sóbrio dos sobrescritos que durante tempos chegaram à minha caixa de correio. Ainda guardo todas essas cartas e também os recortes d’ “O Arrais” que gentilmente me foi enviando. Ainda guardo o carinho com que acompanhou, mesmo que à distância, o meu projecto sobre a república de estudantes de Coimbra de que foi fundador e que (em boa hora) escolhi como objecto de investigação. Na verdade, encontrámo-nos somente três vezes – uma (a última) em Peso da Régua, como disse, duas em fins-de-semana ‘palacianos’ (ou não fosse “a melhor malta” a do Palácio da Loucura), em momentos quase inenarráveis em que, nas suas palavras (Tomar, Junho de 2003), “parecia explodir uma alegria que ficou por gastar em Coimbra”. Contudo, a nossa amizade epistolar faz irremediavelmente parte da minha história.
Ainda guardo o entusiasmo e a jovialidade das suas palavras – ao telefone e em cartas demoradas e explicativas, quando paciente e generosamente me relatou os seus tempos de estudante partilhados com ‘irmãos’, para além do mano João, que ainda conheci, no Porto. Guardo páginas e páginas de letra fina, que me chegavam como resposta às minhas listas de questões (sempre enormes, eu abusava…), logo dois dias depois, pelo correio, com o tal carimbo. Obrigada por ter entendido com rara lucidez a minha necessidade de ‘limpar arestas’ deformadas pelo tempo, e obrigada pelo esforço de memória que lhe pedi sem rodeios. Eu abusava, face ao seu ânimo, face ao seu contentamento e face ao seu espírito livre, a discorrer com a graça que o caracterizava sobre a vida de outrora da cidade do Mondego – no ‘cotovelo’ do tempo, num emaranhado de ruas estreitas da Alta de Coimbra, becos, risos, vielas, as serenatas, a solidariedade, o vinho do pipo, a amizade e a saudade, piadas como serpentinas, episódios mil, com contas a pagar e muitos cravanços consentidos. Volto às cartas, e a primeira que me vem à mão tem esta confissão – “numerei as respostas às suas perguntas – às vezes a memória fica a doer, de tanto procurar servi-la com exactidão”. Isto é ouro, Dr. Camilo.
E ainda guardo (como não?) a recordação do último parágrafo da carta que recebi na véspera da apresentação do meu primeiro livro: “na minha esquina de mendigo de glóbulos, estarei a aplaudir o livro Viver numa República de Estudantes de Coimbra – A Real República Palácio da Loucura, 1960-70, da Dra. Teresa Carreiro”. Tenho-as de cabeça e no coração. Ainda guardo a emoção, o desgosto, a comoção com que recebi naquele dia, logo depois do almoço, estas palavras em letra inconfundível e tão familiar para mim.
Mais: guardo o remorso de o Dr. Camilo não ter já recebido o meu agradecimento escrito pelo último livro da sua autoria com que me presenteou (soube-o pela esposa, num grande aperto de garganta). Tenho os seus livros perto de mim e espreito-os sempre numa diferente sequência de lugares e de rostos. E de si guardo uma saudade grande. Está lá sempre, intacto.
Deixo aqui as minhas maiores felicitações pela iniciativa de o homenagearem, Dr. Camilo.

Teresa Carreiro

Coimbra, Março 2016 

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