quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O rio e a raiz

Foto:josé alfredo almeida


Sonhei esta noite que estava na hora da minha morte. E porque queria ir a bem, sem a tortura de vãos esbracejamentos, respirei fundo, deitei-me e esperei. Nesse instante, contava vislumbrar uma luz branca de fulgor magnético e sobrenatural, encontrar a minha mãe reconstruída, abrindo o colo para mim, assistir ao desfile épico dos meus grandes momentos e ter direito à verdade absoluta sobre o universo, aceitando enfim os seus terrores e divindades.
Mas nada desse romantismo me foi dado. Antes senti o corpo envolvido por uma cálida doçura e pareceu-me que me fundia com a terra como se, ao invés da elevação, a morte fosse o retorno à raiz. Depois, a magia possível aos sonhos transformou a terra em água e, de ambos os lados do meu corpo, levantaram-se duas encostas, vindo pousar no redondo dos cumes quatro águias em atitude de vigia. Comecei a submergir devagarinho. Primeiro senti a liquidez nas têmporas e ouvi o sussurro apaziguador de vidas oriundas da nascente. Com o peso, o peito naufragou, duas ondas encontraram-se no intervalo dos seios e aí ficaram as águas a borbulhar como num lume brando e prolongado. Afundou depois o ventre, com a lisura resgatada ao tempo da maior inocência. 
Aos meus pés, vi que o sol derramava sangue vivo no poente. Mexi-os devagar, procurando neles a função de um leme. Inútil. Fui deslizando, sem escolha, para a foz. Morri tal qual um rio a correr, no leito inevitável, submetida à gravidade, em curva e contracurva, ao fim de uma bela tarde de verão.


Olga Magalhães

22 comentários:

  1. Há textos, poucos, muito poucos, que reconstroem deus, pelo extremo exercício da beleza. Encontro, maravilhado, este. Divino, de tão humano. Humano, de tão divino.

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    1. Obrigada, caro Xilre.
      Sempre humano e apenas humano, porque que não sei outra forma de olhar.
      Um abraço.

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  2. perante as sensações que o texto me traz, é impossível não lhe agradecer (uma vez mais) a escrita. muito obrigada.

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    1. Obrigada, Flor.
      Essas sensações devem-se à sua disponibilidade para sentir, não ao texto.
      Até já.

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  3. Há lá mais romântico (e simples) do que isto? Beijinhos

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    1. Obrigada, Mãe Sabichona.
      Espero que não se meta a interpretar este sonho :-)
      Um abraço.

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  4. ALGO DE ::::::::MARAVILHOSO::
    E DE UM REQUINTE MUITO :::PRÒPRIO:::!!!!

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  5. E desde quando o telúrico não é domínio celestial, ou o humano não é divino...?

    Gostei especialmente da estética que irrompe por todo o conteúdo.

    Abraço, Olga.

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    1. Paulo, não me dificulte a vida com uma pergunta dessas numa caixa de comentários. Sabe bem que não estou habituada a esta interacção telegráfica...
      Um abraço para si também.

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    2. A pergunta foi, obviamente, retórica; já o seu texto, sublime.

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    3. Estou a tentar responder-lhe de forma a não perder, mas esse olho fixo na sua imagem de perfil intimida-me à partida.
      Vou sair de mansinho e um dia destes passo lá na sua "casa" - onde não faltam textos sublimes - para lhe deixar uma pergunta retórica, a ver como se safa.

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  6. A fotografia ..entra ..suave e intensamente no.. "MARAVILHOSO"!!!!


    Suscita ,,todo o momento ...por si só.!!!
    Parabéns amigo , José Alfredo..!!!

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  7. Bom poder dizer-te ao vivo, bem debaixo de um texto teu, que é uma maravilha ler-te...

    Abraço Olga.

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    1. Melhor ainda quando a coisa é recíproca.
      Um abraço apertado e obrigada, CF.

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  8. A escrita da Olga tem o poder de me transmitir paz. Uma tranquilidade que em certos dias bebo sofregamente. Mesmo aqui, no leito de uma morte fria que nem o sol de sangue aos pés aqueceu, me senti em paz. E não foi só no fim, quando o texto nos devolve a uma tarde cálida de verão.

    "a morte fosse o retorno à raiz" - lembra-me o poço do jardim da Quinta da Regaleira, em Sintra. Já visitou, Olga? Já desceu o poço? Se não o fez, recomendo.

    Um abraço aos dois, obrigada.

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    1. Estive para lá ir há muito, muito pouco tempo. Mas os planos alteraram-se. Talvez este ano, mas como não fiz lista de resoluções não posso garantir :-)
      Um grande abraço para si também, Susana.

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  9. Um belo texto para uma fotografia igualmente bela. É um privilégio lê-la, Mãe Preocupada. Não só pela forma como escreve - uma espécie de sonata perfeita em palavras -, como pelo que escreve. Tudo faz tanto sentido. Tudo me faz sentir.
    Obrigada aos dois :)

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    1. Obrigada, Miss Smile. Como já disse lá acima, à Flor, é da sua disponibilidade para sentir que vem o sentido do que escrevi. Mesmo uma sonata perfeita (da qual estou muito longe) é nada sem a generosidade dos ouvidos que a escutam.
      Abraço.

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    2. O autor da fotografia, tirada no cais da Régua, no fim de uma quente tarde do último verão, agradece o elogio da Miss Smile.
      E convida-a a regressar mais vezes ao vale Douro e desembarca na Régua, no cais da "Pátria Pequena, para revisitar esta luz fantástica dos dias ao entardecer e perder-se nesta escrita luminosa da Olga Magalhães.

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  10. Finalmente, encontro um espaço onde não só posso deixar um público elogio à sua escrita, como ainda posso sentir/ler as opiniões dos seus demais leitores. Todas em perfeita sintonia com o que penso. Obrigada por esta "interacção telegráfica" e, sobretudo, pela sua escrita.

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  11. Agradeço eu, Leonor. É bom saber que continua por aí. Um grande abraço.

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