quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Literatura e Medicina: Magalhães de Lemos

Foto: arquivo da Tertúlia João de Araújo Correia


Dava-nos lições magistrais e apresentava-nos doentes típicos no salão  nobre do Conde Ferreira. Também ali reunia, presidido por ele, o conselho de psiquiatria forense - exames às faculdades mentais de criminosos. Nós, para aprender, assistíamos às reuniões. Passavam, pelos nossos olhos desertores, criadas envenenadoras, uxoricidas, criminosos tais, que só o patos, bem averiguado, explicaria. Magalhães de Lemos, condoído de todos, escabichava o patos. No fim de cada sessão, nunca se esquecia de perguntar se o examinado tinha tatuagem.
- Tem alguma tatuagem, Magalhães?
Esta pergunta, no fim de cada exame, era fatal. Magalhães era o Dr. José De Magalhães, braço direito do mestre no Hospital do Conde Ferreira.
- Tem alguma tatuagem, Magalhães?
Suma importância tinha a tatuagem. Homem tutuado, homem degenerado?
(...)
Apesar de surdo, o Professor Magalhães de Lemos percebia  o mundo físico e moral. Reduzia os olhos a duas fendas chinesas para escutar. Nos exames, se o aluno, mal preparado, quisesse abusar da sua surdez, não o conseguia. As duas fendas chinesas apuravam-se como objectivas de microscópio Zeizss. O aluno, falava, falava, falava...O mestre, moita. Deixava-o falar até que lhe dizia:
-Parece-me que isso...está um pouco atrapalhado!
Cauteloso, cortês e...exclamativo! Atra-pa-lha-do!
Verbo pitoresco, vindo de Felgueiras, do torrão natal. Verbo antigo, mas ainda lustroso do roçar das leiras. Ao explicar a pelagra, chamava ao milho... milhão!
Quem visse na rua o professor Magalhães de Lemos diria: vai ali um rico. É que usava peliça, guarda-chuva de seda, barba esculpida a preceito, cachucho, conforto. Parecia brasileiro.
Rico era de bena materiais e espirituais., mas não os ostentava como parvajola. Assentavam-lhe no pêlo como luva inata. Não tinha automóvel como , hoje em dia, quem fede  com a  barriga a dar horas. E trabalhava...Morava defronte ao Hospital, no gabinete, na enfermaria e no salão nobre, iniciando os rapazes numa ciência que poucos apreciavam: a Psiquiatria.
Quanto a coração...Se, a qualquer hora da noite, entrasse em agonia um velho hóspede do manicómio, sem a mínima luz dentro do crânio, ex-homem ou homem que nunca o tivesse sido, o professor Magalhães de Lemos não arredava pé.Assistia-lhe ao trespasse até o último sopro.
Tinha o seu quê de santo o professor Magalhães de Lemos.


João de Araújo Correia in  "Revista do Norte"

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