quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Debaixo do céu




O velho, que tinha feito casa, à força de trabalho e de economia, viu abalar, sorrateiramente, para a guerra civil, os três filhos mais novos: o José, o António e o Francisco. (…)
Pobres moços! Doidos de todo, lá foram para a guerra, tomando cada um o seu caminho. Vão-se matar uns aos outros. 
Naquele tempo, já hoje tão remoto, só havia duas bandeiras. Havia o lábaro azul e branco, jurado pelo José, e o lábaro vermelho e verde, jurado pelo António. O Francisco, inimigo de tudo, pálido como um defunto, odiava as bandeiras. Fazia escárnio de qualquer farrapo arvorado num pau. No entanto, sem se saber porquê, morreu à sombra do pavilhão verde-rubro. Tombou no primeiro recontro. (…) 
Durante a guerra, o velho e a velha andavam fora de si. Que será feito daqueles três maluquinhos? Era o que perguntavam às paredes da casa.
Ele, no entanto, para espairecer, pegava na guitarra. Grande tocador desde o tempo da tropa, que já ia longe, arrepelava-a até ela gemer ou estoirar. A velha, que só sabia tocar no balde para chamar os recos, entretinha-se a cozer pão e fazer barrelas. Mulher de trabalho como aquilo...Mas, a poder de dias e canseiras, ia-lhe descaindo, até o queixo, o lábio inferior.Parecia boca-aberta depois de ter sido, anos e anos, a discrição em pessoa.
-Quando te vejo pegar na guitarra, penso que endoideceste. que coragem a tua! pegar na guitarra, para tocar como nunca, sem se saber ao certo o que terá acontecido aos nossos filhos, só de doido! não toques, Niceto, que parece mal. 
-Deixa-me cá, Lianor. Se não fosse a guitarra, que me compreende mais do que ninguém, é que eu endoidecia. quero-lhe tanto como a ti, mulher!
(...)
Veio o Natal. Era o primeiro depois da guerra, que tinha começado e acabado no princípio do ano. Já a erva crescia, sobre a cova dos mortos, quando chegou o primeiro Natal.
O José e o António, que se tinham batido como duas feras, zangadas uma com a outra, tomaram cada um o seu caminho para subirem ao cume do oiteiro, onde encontrariam, habitada ou desabitada, a casa de seus pais. Subiram debaixo de um céu crivadinho de estrelas. Nem uma nuvem o escurecia.
Era Natal. Mas, os sinos ainda não tinham começado a tocar para dizer ao mundo: nasceu Cristo. 
Os dois irmãos, cada um em seu caminho, cismavam na limpidez da noite, no brilho de cada estrela e no silêncio da terra. Silêncio e quietude… Não bulia uma folha, não miava um gato nem ladrava um cão. Debaixo do pálio, que era o céu estrelado, chegaram os dois, aquando e quando, a moradia paterna. Pararam no quinteiro. Viram luz numa janela e como que ouviram gemer uma guitarra. Caminharam um para o outro e disseram: olá! 
Pouco mais adiantaram. Mas, erguendo a cabeça, viram-se um ao outro como nunca se tinham visto. 
- Põe os olhos no céu, meu burro! Entendes que valeu a pena? O que se passa cá em baixo, comparado com aquilo, é cisco. 
Disse estas palavras o António ou o José, disse-as talvez a imensidade da noite. Sabe-se ao certo que os dois irmãos, abraçados um ao outro, choraram como crianças. 
O pai, descendo as escaleiras da casa, deu as boas-vindas aos filhos sem despegar da guitarra. Tocou desaustinado. Mas, às tantas, perguntou pelo filho Francisco. 
- Morreu, pai! 
- Morreu? Não pode ser. Vinde cear. 


João de Araújo Correia in "Outro Mundo"

Sem comentários:

Enviar um comentário