sábado, 3 de outubro de 2015

Vindimas da minha saudade




Chegam-me de muito rapazinho as primeiras recordações do tempo das vindimas.
Ainda vinham longe, aparecia por casa do meu avô de Canelas um homem rogado para remendar toda a cestaria rebentada da última vindima. Trabalhava debaixo de um alpendre, montado num banco comprido que tinha um artefacto de ferro como que o cesteiro, com os pés, largava e prendia a tira de madeira de castanho que ia desvastando com uma faca arqueada de dois cabos. Preparadas as ripas, o cesteiro cerzia cestas e cestos vindimos com uma arte que me encantava.
Também me prendiam ao alpendre as histórias rústicas daquele homem da serra que descia ao Douro como um prenúncio de vindimas.
Mais perto da azáfama das vindimas, lavavam-se os lagares, preparavam-se as pipas e os tonéis. Também se varria com grandes vassouras de giesta todo aquele chão à espera de uvas.
Na véspera de começar o corte aparecia o Tio João Lucas a combinar com o meu avô as mudanças da dorna. Naquele tempo, as dornas serviam para trazer ao lagar as uvas das vinhas mais distantes. A multidão de figuras que conheci por toda a parte, a vida inteira, não apagou o mínimo traço da do Tio João Lucas, muito feliz com seus lindos bois e a dorna babada de mosto.
O Viando era uma propriedade tão distante que a família se instalava lá, do princípio do corte ao fim da encuba. A casa de xisto, enegrecido pelo tempo, era de uma rusticidade tal que ainda hoje a sua recordação me alivia do tédio que nos dá tanta comodidade e modernismo. Era rústica a casa, rústicos os móveis, simples a comida e primitivo o silêncio imaculado das noites.
Em todas as serras durienses, havia nas vindimas um frémito de festa, mal disfarçado por tantos cuidados e suores.
Na grande cozinha dos lavradores as mulheres passavam o dia afogueadas em redor da lareira, onde os potes de muitas tigelas seguravam em três pés uma espécie de negra e rotunda importância.Com os pais ocupados na vindima, as crianças brincavam nos quinteiros com redobrada algazarra.
Os lavradores andavam pelas vinhas a trocar impressões com os caseiros. Falavam do desavinho que houve, da chuva que veio em má altura, dos ataques de míldio e do oídio, daquele sol que andava a chupar as uvas até à grainha…
Para o lavrador duriense, do rasgar da terra para o plantio, à chegada das uvas ao lagar, o granjeio é um rosário de tragédias. Mesmo nos melhores anos, com o vasilhame cheio até ao batoque, há sempre quem diga desconfiado:

- Isto ainda minga muito…

Entre piadas maliciosas e cantigas repetidas em cada vindima, as mulheres iam cortando as uvas e berrando pelo rapaz dos cestas, de cada vez que alguma se enchia. E os rapazes, mais ladinos ou mais ronceiros, as iam despejando, sempre que possível, ao longo de um muro, à feição das costas que os haviam de levar ao lagar. E aquela fila de homens possantes, de orgulho nos olhos, subia e descia todas as encostas, ao ritmo de um assobio ou das interjeições dos mais afoitos. De sol a sol, entre a vinha e o lagar, vezes sem conta... 
Quando a sede apertava, ouvia-se um coro de ressonância primitiva que parecia ecoar pelo Douro inteiro:

- Beba-se… beba-se… beba-se… beeebaaa-se!!!

E o púcaro de alumínio passava de mão em mão, de sede em sede.
Nas noites de pousa, as mulheres cantavam e dançavam no terreiro ao som do harmónio e dos ferrinhos que vinha do lagar. Aí, depois do corte, ao ritmo de esquerdo… direito… esquerdo… direito… os homens desabraçavam-se e acabavam a pousa com troças e jogos de sabor antigo.
Se as noites iam frias, o feitor alargava-se, às vezes, na distribuição da bagaceira. E os homens de vinho mau à saída do lagar, a remoer um remoque mais azedo, cruzavam olhares torvos que, às vezes, prolongavam até à ponta das navalhas.
As uvas que dantes eram vindimadas por mãos que as levavam aos lábios num sorriso de apetite, acolhidas por uma cestaria que vinha do tempo de Noé e morriam no sacrifício dos lagares, andam hoje de plástico em plástico, de contentor em contentor, até desaparecerem nas fauces de uma adega, sem tempo para se despedir de alguém que as amou e do Outono que as amadureceu… 


Camilo de Araújo Correia - In revista “Villa Regula“, nº3, Setembro de 1999

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