quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Sou, sem querer, escritor do nosso tempo

João de Araújo Correia




Minhas Senhoras e Meus Senhores

[...] Verdade é que tem sido serôdio muito do que em minha vida me tem acontecido. Nasci no último ano do século XIX. Deveria ter nascido antes, a tempo de figurar como comparsa no grande teatro literário em que foram actores de primeira plana um Camilo, um Ramalho ou um Eça. Nasci tarde para me criar e fazer homem num mundo que não é o meu. Nasci liberal, tolerante e risonho debaixo de um signo que não é o signo de quem nasceu depois. Fiquei reservado, à beira do caminho, para presenciar painéis de almas sombrias por amor da bandeira que juraram. Ando a passear saudoso nas avenidas do século XX com um chapéu cortês do século XIX. Sou um desgraçado!

[...] Sou, sem querer, escritor do nosso tempo. Mas, escritor malogrado. Tudo me tem empecido. A falta de meios pecuniários, saúde pouca, arbítrio reduzido à sujeição, soledade estreme e até saudade do que não vi, mas entrevi como bom, tudo me tem empecido. As obras que produzi são amostras de encomenda que não consegui executar. Peço desculpa.
Nessas amostras, porém, senhoras e senhores, peço-lhes que notem a seriedade do fabrico. Em sua tessitura, não há fio podre nem fio torto. Em seu humilde debuxo, é descarnado o traço para melhor se apreciar a sua correcção.
A lã com que teci é churra, mas nossa. É nossa a língua com que balbuciei o que não pude expressar. São nossos os tipos do meu roberto. É nossa a madeira da minha barraca. São nossas as vistas que se descortinam do terreiro onde a levantei. É tudo português em mim. Se é defeito, hajam de desculpar. O amor à terra onde nasci e me criei é pecha que não incomodará ninguém por muito tempo. Vou-me embora, porque sou velho.
Mas, não tão velho, que não possa esperar deste singular jubileu alguns anos de vida. Em Portugal, trabalha-se mais na reforma que no tempo activo. Se assim me acontecer, sirva-me de estímulo, o primeiro que recebo na minha vida, o preito que Lisboa me concede. Tentarei forjar, em dias outonais, obra que satisfaça a consciência de quem me cortejou em maré de excessiva magnanimidade.


Excerto do discurso proferido por João de Araújo Correia na Casa da Imprensa, de Lisboa, em sessão solene da Sociedade Portuguesa de Escritores, a 26 de Julho de 1960

1 comentário:

  1. A magnificência ...
    a serenidade ..a nobreza..a simplicidade,,,

    para sempre.....

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