quinta-feira, 22 de maio de 2014

Os livros de João de Araújo Correia-9





Os melhores contos de João de Araújo Correia
- selecção e prefácio de Guedes Amorim
Editora: Arcádia, 1960



PREFÁCIO

"Cumpre sem demorar fixar que a paisagem constante de J.A.C. é duriense, e durienses são, na quase totalidade, as suas personagens. Cedo começo a gostar de ler as terras rústicas este homem de letras. Por isso, se como naturalista definirmos tal gosto, favor nenhum será chamar-lhe naturalismo vocacional.
(...)
Somente  um parentesco literário se lhe poderá apontar, este o mais honroso: Tchecov. Como o glorioso contista russo, possui Araújo Correia o génio da brevidade.
Na prateleira do Regionalismo, terão lugar os livros contista do Douro? Sejamos cautelosos porque, se veramente terra e homem se identificam, com autenticidade antropológica,  nas obras do escritor, também não é menos verdade que tal identificação traduz, não raro, intensidade da vida primitiva que levanta o humano acima do local.
Mais universais que regionais nos parecem muitos dos contos de Araújo Correia. De bem longe se sabe que o caminho do universal pode começar sempre no nacional; e, dentro deste, até no que seja especificamente regionalista. Ora, para se reconhecer se vem agarrado às páginas do contista o húmus duriense, com dimensão universal, por esta dupla e convincente prova  os poderemos fazer passar: Escutando-os, mesmo de olhos fechados, dirá um ouvinte daquela região: "Passa-se isto na minha terra e essa gente é dos meus lados." E, leitor seja já de que país for, chamado pela invulgaridade do meio, como atento nestas curtas e primorosas histórias, à explosão de instintos, adejos ou entrelaçamentos sentimentais, choques de prazer, concluios ou desencontros de interesses, escorados em ronha ou lisura, forçosamente aceitará, sobre essa originalidade paisagística, tão de perto seguida pela originalidade verbal, que na dramática comédia, perpassam quadros de paixões humanas, da brisa do sonho à agrestia da realidade.
(...)
A conclusão aproxima-se: se aos contos de J.A.C., na trilogia paisagem, estilo e realismo - principais, não únicas facetas da personalidade do escritor - vem agarrado o húmus do próprio meio, tudo isso se evidencia pela abundância de casos de quilate humano e não por  hipotéticos ou fundamentais casos clínicos, quer dizer por dependência do homem, quando escritor, ao médico. A comprová-lo, nem a maioria, a metade ou sequer um terço dos seus contos tem o clínico como narrador ou a Medicina como entrecho ou caracterização das diferentes personagens.
(...)
Próximo da pequena vida rústica, afinal imensa em universalidade, e sem a embelezar, mas também não a esquecendo no colorido de costumes, no linguajar e na poesia, vai o autor do drama realista à caricatura sem blandícias. São estes verdadeiros pólos em que o povo se dá e se transmite. Contudo, a seguir desvios mentais, não menos realistas que quaisquer outros, ainda que estranhos e impressionantes na sua rareza, oferece-nos o autor o trabalho acabado através de A Fuga, conto seleccionado, por seu turno, de Caminho de Consortes. Quadro movimentado de demência mansa, vizinha da filosofia e da poesia,  A Fuga, que nos mostra mãe e filho a falar e a gesticular poeticamente dentro da vida sorna dum meio pequeno, poderia bem formar como Jordão, Conto do Natal e Eleia possível e gloriosa contribuição para desejável volume que se intitulasse, por exemplo, "Os Melhores Cem Contos Eternos" !
(...)
Nas sucessivas grandes e merecidas homenagens ao nosso escritor se viu já que não estavam afinal esquecidos os cuidados de distinguir quem à iniludível consagração tinha jus. Ora, quanto a mim, justiça significa igualmente fraternidade, o que pode chegar para medir uma atitude sem preço. Acompanhando, pois, deste modo as homenagens, ousamos esperar que as desluzidas palavras que aí ficam, sem intenções de ressonância, possam dar ao menos sinal desta convicção: João de Araújo Correia, meu vizinho, não é só o maior contista da minha terra, mas também o maior contista contemporâneo português."

Lisboa, Junho de 1960

Guedes de Amorim

1 comentário: