sábado, 2 de novembro de 2019

O Outono da vinha, o Outono da vida

Foto: josé alfredo almeida



vermelhas, as folhas

acendem fogueiras nos montes:

vai o outono a meio


Fancisco Niebro


   Agora que estou, por direito, em pleno outono da vida, criei o hábito de ir em romagem anual, por voltas do S. Martinho, não em romagem a Dume, mas ao Douro. Não vou em busca de sobrevivências arqueológicas, muito menos ao cheiro do vinho das bandas de Braga. Nesta e em muitas outras matérias leio pela cartilha de Torga. Farto da monotonia cromática da paisagem, queixa-se ele que no Minho tudo é verde, até o caldo, até o vinho….Pois eu perco-me por estas terrinhas habitadas por gentes e por bichos, por leiras de batatas com todos, logradouros de casinhas cultivados ao centímetro, onde picam pitas, donde brota a frescura fértil de toda a casta de hortaliças, provadas por lesmas e caracóis, lambuzados de verde.

    É Outono na vinha. Estou no Outono da vida. Entendemo-nos às mil maravilhas. Ela gosta das palavras que lhe dedico. Eu gosto dos tons poéticos, irreverentes, meigos, com que me acaricia olhos e alma.

  Vou por estradas de macadame retocado atabalhoadamente, como velha senhora de bâton e rouge. Remendam-lhes os fracassos, mas não se atrevem a endireitar-lhes as curvas. Ficaram reservadas a condutores em tempo de não terem de dar satisfações ao tempo. Não impõem mínimos nem máximos de velocidade. Mantêm a vocação de serem escolha de condutores de domingo. São suficientemente maduras para reclamarem vias verdes. Conservam a sinalética démodée, as beiras ervadas, os marcos de destino museológico. E, com um pouco de sorte, os sorrisos vermelhos e embriagadores das cerejas do Outono. Aqui e acolá, a sua generosidade vai ao ponto de cederem espaço a um recanto estratégico para mirones viciados em miradouros que ainda se têm nas canetas… Eu cá sou fã assumida. Como o tráfego é muito moderado, estou à vontade para sair do carro, sem necessidade de pespegar um olho no burro e outro no cigano…

  Quando cumpro este ritual de contemplação espreguiçada da “oitava maravilha do mundo” (Saramago), escolho um dia pós hora de Verão em que o senhor Sol se digne polir as parras como se faz aos metais com sucedâneos de solarina. É, então, um festival de Outono com apenas um artista entradote na idade. Não se canta, nem dança, nem berra, nem esbraceja, nem despeja os pulmões com gritinhos histéricos. Tudo se passa em silêncio colorido, em paz, em humildade, em oração. Não há palmas. As mãos delegam na alma todos os aplausos.


M. Hercília Agarez
Vila Real, 02 de Novembro

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