Fiz
uma quarta classe à moda da época, em 1945. Sem meios para me porem a dar
seguimento ao meu gosto pelo saber, puseram-me os meus pais de marçano na loja
de tecidos do Sr. Aniceto, a quem toda a garotada tirava o A inicial. Eu até sabia as medidas de comprimento, era um ás nas
contas, (obrigada, mestra Porfíria), depressa aprendi a distinguir a seda do
algodão, o veludo da pura lã, a chita da tabela do cetim para os forros e
outras minudências que não vêm ao caso. E não sou daltónico.
Tornei-me adulto respeitado, homem frugal
e quase sem vícios, a não ser o cigarrito enrolado à mão, alisando a mortalha,
languidamente, num prazer antecipado. Minto. O meu maior ensimesmamento é a amada
língua que me gabo de usar com toda a propriedade. E não perdoo ao mais pintado pontapés na gramática. A minha "bíblia"
é, ainda, o Comércio do Porto, assinado
pelo patrão, e que eu coloco em local estratégico para lhe degustar,
sonsamente, uma ou outra frase.
Com as economias conseguidas (menos
engraxadelas nos sapatos, uns polainitos novos, uns cafezinhos com cheiro, uma
cautela por mês), comprei, de uma assentada, a pronto, um dicionário e uma
gramática, em breve mais parecendo alfarrábios do que de adereço de cómoda,
sujeitos à queda de alguma vela tremeliquenta
acesa ao S. Judas Tadeu...
Dei comigo meio filólogo, meio filósofo. Nunca
suspirei por escolas para aprender a bem
falar e a bem escrever. Sou, em matéria de letras, um autodidacta, termo bem
mais bonito do que doutor. Além da rotina de atender o mulherio exigente e
sovina, a minha modesta estadia nesta vida resume-se ao estudo esmiuçado
daquela de quem Fenando Pessoa, passando a incumbência a Álvaro de Campos,
disse ser a sua pátria - a língua portuguesa. Pois se foi dele, também será
minha. Eu mesmo teria expresso tal ideia (ou melhor...) se tivesse vivido antes
dele. Modéstia à parte...
Desculpem-me os senhores leitores ainda
acordados esta verborreia. Eu já explico o que tem a ver o c.. com as calças.
Certo dia, parando, seduzido, em frente
duma Pensão bem conservada, convidativa, mirando as janelas fechadas, abertas e
meio abertas, vazias ou enfeitadas de "gentis flores", com cortinados
anti-mirones, deu-me na veneta dar corda aos miolos e, talvez pela primeira vez, fiquei derrotado com a
dúvida preposicional a martelar-me no toutiço. Fui a correr atacar a gramática
e, de caminho, a fatal hesitação agredia-me o aparelho auditivo. E se alguém me
perguntar se este hotel é de meninas
ou para meninas, que respondo?
M.
Hercília Agarez
Vila
Real, 15 de Abril de 2017
Uma boa pergunta, num excelente texto.
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