terça-feira, 17 de abril de 2018

Pensão de ou para meninas?




       Fiz uma quarta classe à moda da época, em 1945. Sem meios para me porem a dar seguimento ao meu gosto pelo saber, puseram-me os meus pais de marçano na loja de tecidos do Sr. Aniceto, a quem toda a garotada tirava o A inicial. Eu até sabia as medidas de comprimento, era um ás nas contas, (obrigada, mestra Porfíria), depressa aprendi a distinguir a seda do algodão, o veludo da pura lã, a chita da tabela do cetim para os forros e outras minudências que não vêm ao caso. E não sou daltónico.
     Tornei-me adulto respeitado, homem frugal e quase sem vícios, a não ser o cigarrito enrolado à mão, alisando a mortalha, languidamente, num prazer antecipado. Minto. O meu maior ensimesmamento é a amada língua que me gabo de usar com toda a propriedade. E não perdoo ao mais  pintado pontapés na gramática. A minha "bíblia" é, ainda, o Comércio do Porto, assinado pelo patrão, e que eu coloco em local estratégico para lhe degustar, sonsamente, uma ou outra frase.
       Com as economias conseguidas (menos engraxadelas nos sapatos, uns polainitos novos, uns cafezinhos com cheiro, uma cautela por mês), comprei, de uma assentada, a pronto, um dicionário e uma gramática, em breve mais parecendo alfarrábios do que de adereço de cómoda, sujeitos  à queda de alguma vela tremeliquenta acesa ao S. Judas Tadeu...
      Dei comigo meio filólogo, meio filósofo. Nunca suspirei por escolas para  aprender a bem falar e a bem escrever. Sou, em matéria de letras, um autodidacta, termo bem mais bonito do que doutor. Além da rotina de atender o mulherio exigente e sovina, a minha modesta estadia nesta vida resume-se ao estudo esmiuçado daquela de quem Fenando Pessoa, passando a incumbência a Álvaro de Campos, disse ser a sua pátria - a língua portuguesa. Pois se foi dele, também será minha. Eu mesmo teria expresso tal ideia (ou melhor...) se tivesse vivido antes dele. Modéstia à parte...
     Desculpem-me os senhores leitores ainda acordados esta verborreia. Eu já explico o que tem a ver o c.. com as calças.
    Certo dia, parando, seduzido, em frente duma Pensão bem conservada, convidativa, mirando as janelas fechadas, abertas e meio abertas, vazias ou enfeitadas de "gentis flores", com cortinados anti-mirones, deu-me na veneta dar corda aos miolos e, talvez  pela primeira vez, fiquei derrotado com a dúvida preposicional a martelar-me no toutiço. Fui a correr atacar a gramática e, de caminho, a fatal hesitação agredia-me o aparelho auditivo. E se alguém me perguntar se este hotel é de meninas ou para meninas, que respondo?
   

M. Hercília Agarez
Vila Real, 15 de Abril de 2017

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