domingo, 24 de abril de 2016

E tudo o tempo mudou...

Mercearia Grande Ponte



Mercearia. Um senhor aprumado dá-lhe dignidade. Parece um galã de cinema que Hollywood ignorou. Para bem das sopeiras, sempre à espera de um piropo dentro das normas da decência. São, talvez, as principais frequentadoras. Com as suas fardas servis, munidas da lista que a patroa lhes meteu nas mãos com a recomendação de irem num pé e virem noutro, todas se regalam com aquele passeio de liberdade não isento de um ocasional encontro com o conversado. O merceeiro regista no caderno as compras avulsas, não incluídas nas do mês, pesadas, que marçano lépido entrega nas casas com mãos de esperar gorjeta. Às vezes fazia falta uma reprodução daquela estatueta do Zé Povinho a fazer um manguito e a dizer: "Se queres fiado, toma"!

Mercearia. Tempo dos cartuchos em papel pardo, de todos os tamanhos: para o arroz, a massa, a farinha, o café. Pesados naquela elegante balança decimal que nunca roubou um grama ao freguês... Cartuchos multiusos. Desde o chupar dos excessos de óleo dos fritos, até ao uso terapêutico (com água e açúcar) de dar liberdade aos "galos" da miunçalha.

Mercearia. Escondido, por inestético, o bacalhau, com fama a dispensar a exposição do corpo nu. Bolachas Paupério. Nacionais, claro. Acomodadas com aquela palhinha em papel fino. Ai o sabor inesquecível das de baunilha! Latas de conservas, iguarias de emergência. Peixes da nossa costa. Chocolates e rebuçados com direito a montras e a frascos de vidro a meterem-se pelos olhos dentro. Rebuçados de tostão, de recheio, caramelos quadrados de pratas coloridas. Suplícios de Tântalo, para a canalha.

Mercearia. Local de venda de bens de primeira necessidade. Comércio honesto. Sem publicidade nem promoções. Sem prazos de validade. Sem gatos por lebres. Passou de moda. Resta uma ou outra como peça de museu para turista fotografar.

Está deslocado, o detergente. Mas compreende-se. Commerce oblige. E o Tide até tinha novela radiofónica...




Vila Real, 24 de Abril de 2016
M. Hercília Agarez

1 comentário:

  1. Manuel Lopes Madeira Pinto14 de março de 2017 às 00:35

    Adorei a descrição. Viajei no tempo, cinquenta anos atrás!

    ResponderEliminar