Por toda a eternidade

Foto:josé alfredo almeida

Os mortos que eu conheci, porque foram humildes, a maior parte deles, arrumo-os num campo a que chamarei “cemitério de aldeia”. Imito o Poeta, que deitou os Simples, antes da lida ou depois da lida, entre lençóis de rosas sem espinhos. Dormem ali, ao relento, os meus cavadores, os meus pegureiros, uma boieirinha, muitas bisavós, donzelas que não chegaram a noivar, criancinhas que acabaram de romper, no mundo etéreo, as asas que trouxeram sobre terra. 

Mas, também ali dormem os que não foram simples. Aqueles que obedeceram a uma estrela, boa ou má, também ali descansam. Ali dormem lavradores ambiciosos, mas, que deixaram a terra um jardim. Ali dormem jogadores de mão trémula, mas, infantis, em seu carácter, ao acender da luz diurna. Ali ressonam bêbedos e ali peguilham, ressonando, os últimos almocreves, com o corpo cosido de facadas. Aqueles, cujo roubo foi a sua sina, ainda a querem cumprir, como se explica o sumiço daquela cruz de prata?

Também ali dormem os siderados de categoria. Ali, em sonhos, se invejam os médicos, mas, cada um deles, tenta salvar os seus doentes. Ali discutem, sonhando, os advogados. Mas, cada um deles, no labirinto dos argumentos, procura uma saída airosa. E os fidalgos? Mesmo a dormir, olham por cima do ombro, querendo provar que a sua tigela, incompleta e já esbotenada, é de cavaleiro – doirado sonho-

Às vezes, da vala comum, sobressai um santo, um mártir ou um herói. Teimam em vencer, depois de mortos, a força da gravidade. Foram talados para esse fim.

Belo cemitério! Sempre que preciso, para o meu repertório, de alguma figura nítida, vou busca-la a esse álbum de todos os matizes psíquicos e corporais. Pelo que lhe devo, bem haja esse guinhol de actores inocentes. Bem haja por toda a eternidade. Amém. 

14/8/1965

João de Araújo Correia in "Horas Mortas"