sábado, 28 de fevereiro de 2015

Aves migradoras





Estes podadores não são daqui. São aves migradoras. […]
A discrição destes homens! É provável que não saibam ler nem escrever, mas têm sabedoria. Não se misturam, não pactuam nem fraguam com os naturais, que são, em geral, conflituosos. É caso raríssimo irem à taberna. Mas, se vão bebem o seu copo e largam. Nada de conversas, nada de se meterem pela terra dentro com quem os pode magoar. Sábia atitude! Dá-lhes como resultado irem daqui com o bolso quente e as costelas direitas. […]
Vêm todos os anos, pelo inverno, como os tordos pela azeitona, podar as vides do lavrador duriense. Vêm de Resende. Pertencem quase todos à freguesia de S. Martinho de Mouros. O povo, cá em cima, chama-lhes são-martinheiros ou, comprimindo a frase, samartinheiros. São os samartinheiros…
Homens de croça… Homens de socos… Homens de chapéu esguio, de colmo, como um rolheiro disposto para aparar todas as águas. Samartinheiros discretos, benignos, poupados, silenciosos de língua, mas ruidosos de pés. Terrum, terrum, terrum… Todas as manhãs me acordam, acordando a calçada íngreme onde moro. Vão para o trabalho. Eu preciso de trabalhar também. Por isso me ergo, não ao canto das aves, que estão mudas, mas ao som dos socos, que tão matutinamente despertam. Não lhes quero mal. Sou indulgente com eles. Para mim, não obstante o seu fragor, são até musicais. Se os vejo, acho-os até coreográficos. São o meu despertador. Não preciso de outro.


João de Araújo Correia in "Três Meses de Inferno"

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