Vila Real, 2 de Abril de
2020
Nestes primeiros dias de Abril, as suas
proverbiais águas não deixam os seus créditos por nuvens alheias. Em tempos de
alterações climatéricas, a natureza faz questão de manter a actualidade de uma
sabedoria popular que raramente tem dúvidas e poucas vezes se engana.
Lá no alto
da serra, os pinheiros bravos enchapelam-se, agora, de amarelo, como impõe a
sua fisiologia. Descontentes com o peso dos “poses” (amigos dos doutores
alergologistas), sacodem os cabelos com tal agitação e persistência que as partículas
invisíveis lhes fogem, lampeiras, esbaforidas. À boleia do vento,
infiltrando-se nos seus interstícios, aterram em chãos urbanos como quem não
quer a coisa. De mansinho, caem leve, levemente, sem que ninguém chame
por elas. Espraiam-se à vontade, saboreando o charme do cheiro a cidade. Até
que lhes chega o momento da visibilidade: uma chuvada não inopinada trata de
arrastar, nas suas águas rasteiras, os pós amarelos, arrumados a um canto,
formando manchas garridas. Começávamos a
perguntar-nos em que estação do ano vivíamos. Ele anda tudo tão transtornado!
Mudaram tanto as regras do jogo da vida humana!
Como, cá por
baixo, encontram todas as janelas abertas, as poeiras rurais sentem-se
convidadas. Entram para colorir superfícies austeras mais à mão, como o
computador, de um preto apetitoso, sobrepondo-se aos parentes próximos, também
eles a pedir pano.
E aqui é
que a porca torce o rabo! Estar em casa, tudo bem. Ninguém cá entra? Claro que
não. Mas eu tenho os meus pergaminhos domésticos. E vai daí, toca a pegar na
vassoura de cerdas pós piaçaba e no seu complemento directo, o pano do pó. O
aspirador está de férias porque a minha lombalgia é incompatível com o seu uso.
No meu tempo
de criança, não me obrigaram a comer a sopa à custa de papões, ladrões, lobos, bruxas cavalonas e demais
ameaças arrepiadoras, pelo que não fiquei com aversão ao meio de transporte
aéreo de feiticeiras feias, encarquilhadas, esgrouviadas e desdentadas. Assim
sendo, dou início à guerra contra o inimigo, até hoje discreto e sem parentela
e, metódica e aplicadamente, percorro o campo de batalha com as forças que me
restam. E vai tudo raso, soalho e tijoleira. Ao levantar as partes possíveis de
carpetes despenteadas, apercebo-me da sua surpresa púdica face à devassa de uma
intimidade tão precatada.
Após pequena
pausa retemperadora, revisto paredes e tectos, não vão eles reservar-me alguma
surpresa. Eis senão quando apanho, em flagrante de teia, uma tecedeira no pleno
exercício do seu ofício. Está adiantada, a obra. E a aranha não infringe as
regras de quarentena. Está em casa, a mais de dois metros de mim, mas… quem me
garante não ser ela portadora de vírus específico para animais para o qual
humanos não possuem imunidade? Pelo sim, pelo não, desfiro-lhe golpe fatal,
recobrando, com este acto de valentia, fôlego para o passo seguinte. Arrumo a
auxiliar de limpeza atrás da porta da despensa, mas não com a cabeça no ar
porque não estamos em tempo de visitas. Pego no pano apropriado. Sacudo-o. Porém, de súbito, invade-me tal
quebranto que lá se vai o ânimo faxineiro. Como, para mim, limpar o pó implica
arredar toda a cacaria decorativa, num baixa-levanta impróprio para seniores,
tomo uma atitude, vergada às evidências. Com todo o respeito por conselho sábio
e sensato, de autor anónimo, resolvo contrariá-lo, ou seja, vou deixar para
amanhã o que poderia ter feito hoje.
M. Hercília Agarez
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