domingo, 8 de setembro de 2019

Também posso jogar?





Eu acordava de sonhos, para mergulhar num rio de emoções.
Eram as férias grandes.
O tempo parecia mais elástico,
do que a fisga que eu levava no meu bolso,
nunca fisguei nenhum pássaro (de propósito), era só para fazer ver.

Eu e os meus amigos, o sol ainda nascente a espreitar os nossos passos.
O rio àquela hora da manhã, podia esperar. A bola não. Novinha em folha, prémio de um furo num tasco lá na nossa rua, onde além de variadas guloseimas, vendiam nougats, por sinal os melhores do mundo. E gelados com brindes de desenhos animados.

Uma pedra de cada lado e as balizas estavam feitas.
Havia regras estipuladas e outras feitas na hora, uma rasteira uma canelada com quem ninguém contava...

A bola brilhava, o sol assistia de camarote.
Fintas de mestres, golos. Juntava-se a rapaziada a assistir, a torcer a assobiar.
No meio do entusiasmo, ouvia-se uma Mãe a chamar:
O almoço está na mesa!
Estamos já nos pênaltis!...
Depois, com o estômago a dar horas íamos todos a correr. Cada um para a sua casa.

No almoço, a germinarem ideias. Brincar ao berlinde ou às cartas, à carica ou ficar a ler um livro até o calor amainar?

Subíamos a uma árvore e ficávamos a ver o rio ali tão perto de nós, inventávamos feitos heróicos, em que ninguém acreditava ou falávamos de algo que deu na televisão, às vezes, construíamos estradas em riscos de giz, onde pequenos automóveis circulavam pelas nossas mãos, alguns a grande velocidade. Prendas que alguns de nós tinham ganho no último Natal.
Já a tarde ia alta, era hora de ir para o rio. Nas mãos, pequenas pedras a fazerem ricochete na água.
O riso límpido das lavadeiras, recordo-o como revoadas de pássaros a levantarem voo. Perdiam-se nos ares depois de ecoarem pelo Douro. Na água, espuma de sabão e o barulho quase sincronizado da roupa a bater nas pedras do rio.
Nadávamos, exibíamos proezas, e antes de irmos embora, mais um jogo, onde no final todos ficávamos a ganhar.


Ao princípio da noite depois do jantar, sentados em escadas ou em muros, ríamos de tudo e de nada.
Ali na nossa rua, duas pedras a fazerem de balizas. Começava o jogo, o último do dia. A bola quase novinha em folha, de pé em pé. Marquei um golo e alguém disse que não valeu... Havia sempre um intervalo quando avistávamos um carro ao fundo da estrada. E nós sonhávamos acordados, com a visão rápida e fulgurante de um Toyota.

Retomávamos o jogo.
Nas portas mulheres e homens sentados a falarem de que algo foi mandado para o espaço, outros conversavam sobre o fim do mundo.

A lua branca e redonda, iluminava toda a rua. Enquanto driblava a bola, de repente uma voz de rapariga:
Também posso jogar?
Acabou o jogo!

Quase a adormecer, eu olhava para a bola que me iluminava por dentro, como a lua a nossa rua.
E sonhei com a voz atrevida da rapariga. Também posso jogar?

Ana de Melo

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