sábado, 28 de setembro de 2019

Para turista ver




VINDIMA

[…] Os homens
andam com os cestos às costas, assobiam,
baralham as ideias, assobiam,
pisam as uvas, envasilham
e dizem: prò ano será melhor.

(No ano seguinte é a mesma coisa).

António Cabral, POEMAS DURIENSES


    É, na verdade, uma imagem evocativa das vindimas no Douro em tempos idos. Eram assim os cestos vindimeiros, cheios até às beiças, alombados sobre capucha e troixa, em protecção possível de pescoços sacrificados. Além das asas de segurar, uma frontal, reforçadas à medida do peso a carregar. Na fotografia não se vê, mas a média eram sessenta quilos. Também não se sentem o sabor e o aroma do melaço das uvas espapaçadas pelo caminho.
    Os carregadores, machos de carga, parecem elementos de um rancho folclórico. As camisas brancas, desnodoadas, não mostram manchas de suor nos sovacos. Em posição de homo pré sapiens, têm força de Hércules, humilham-se, humildam-se, obedecem, sujeitam-se, prestam vassalagem a senhores de quem são escravos, baixam a grimpa até a ordens de feitores. Aí está, na foto, um deles. Erecto, vertical como fio-de- prumo, como a aguilhada da sua altura.  Que empunha, como ceptro, simbolizando um poder conferido pelo patrão, em recompensa de trabalhos dedicados e cúmplices. Um trabalhador cujo trabalho é mandar trabalhar, fiscalizar quem trabalha, recrutar gentes para as vindimas, não os deixar pôr pé em ramo verde. Um alguém socialmente situado mais perto do poder do que do ser.
    Fala-se pouco desta figura, omnipresente em trabalhos de quintas. Capataz também lhe era chamadouro. Mesma a função, mesmo o estatuto, não mesma a altivez, a sobranceria. Há de tudo em tudo. No seu romance VINDIMA, de acção localizada algures entre Sabrosa e o Pinhão, escreve Miguel Torga:

A natureza do Seara [feitor] oscilava entre a voz do sangue e a letra do contato que fizera há anos com o senhor Lopes. A lama em que nascera e onde, de resto, sujava continuamente botas de bezerra, falava-lhe de una naturalidade original, de berço, só rendida a uma lei: - ao aguilhão da fome. Mas o convívio, embora perfilado, com o luxo e as riquezas do patrão, tinha também o seu encanto. […]   evolava-se dele o perfume de uma consideração social que o entontecia.

    A estrada calcetada, plana, larga, feita para os poucos carros, para as carreiras. Assim fossem os caminhos de sobe e desce, enterroados ou lamacentos, entre vinhedos em socalcos e lagar de fim de fadigas, a mais das vezes pertença dos proprietários, parte integrante do complexo agrícola e habitacional onde vinhos nascem para o mundo, gritando, aos quatro ventos, que são Douro. Num vaivém vigiado, numa azáfama sem tréguas, a não ser para emborcar a malga do caldo e o responsado apresigo, os homens  pensam em encontros escondidos com as conversadas e suspiram pela palha das enxergas que nos cardenhos lhes servem de camas. É a diferença entre realidade e cartaz turístico. Very typical !


M. Hercília Agarez
Vila Real, 28 de Setembro

1 comentário:

  1. A realidade que ultrapassa "qualquer "..olhar de Turista ??
    .."Encantado olhar" ..o da realidade ..esse ..
    "brilha " permanece !!!
    .




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