quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Amanhã





A luz de amanhã trará o fim da minha cegueira



    Sim. O prazo está a expirar. É Amanhã. Nem mais um dia, disseste, peremptório, num tom de voz áspero e amargo. E aqui estou. Sozinha, a falar de mim para mim, a fazer-me perguntas, a prometer-me promessas, a ensaiar-me respostas. Medito, qual monge tibetano, mas não rezo. Pensar pode ser uma forma de rezar. Penso. Tanto que as ideias se me desarrumam, se me engalfinham. Penso e sinto um peso sem peso.
    Compreendo-te. Cansaste-te das minhas ambiguidades, das minhas meias palavras, dos meus avanços e recuos, dos meus fantasmas espectrais. Cansado, sim. Dos pontos de interrogação farfalhados no meu olhar, das vadiações entre a confiança e o seu contrário, entre o querer e o temer. Criticas os meus acessos de coragem, sempre retraídos por pruridos sem tino. Sim, tenho noção da minha translucidez. Sou qualquer coisa dividida entre luz e sombra, entre estar escondida e revelar de mim traços difusos. Sou página de difícil leitura, tantos são os paradoxos, as metáforas, as antíteses. Um “novelo embrulhado para o lado de dentro”, como o teu, o nosso, Pessoa.
    Sinto o eco das palavras desconcertante e imprevisível que me atiraste como estilhaços de dúvida e surpresa, quando te estendi os lábios, com a frieza de autómato. Nem deu para saber o sabor da tua boca. - Fui beijado por uma pedra, comentaste.

    Em frente desta árvore exuberantemente despida, penso. Chego a invejar o seu destino sem subterfúgios. Vive por ela e para ela. Não tem um outro. É feliz sem um outro. Só lhe cobram as folhas e as flores e a sombra. Talvez os frutos. Não assim eu. Eu tenho outro. E quero-o. Vou dizer-lho amanhã.

M. Hercília Agarez
Vila Real, 12 de Fevereiro

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