Também
vai à fonte, mas não descalça, como a Leanor
de Camões. E o pote não está cheio de azeite, como o de Mofina Mendes, de Gil
Vicente. Esta donzela vai buscar água.
Marca de um tempo em que ela jorrava, generosa, límpida, à prova de análises
bacteriológicas, com dispensa de cloros purificadores. Água! Houvesse-a na terra, para regar a
novidade, para humidificar solos produtivos, em regos abertos à enxada. Para
encher os poços. Para beber, para cozinhar, a bica nunca se negava a bocas de cântaros
sequiosos, qual úbere seio materno.
Que haveria de mágico na simples cena de
uma figura feminina, rural, enroupada de humildade, mas com uma graciosidade
adelgaçada, com um amparo de mãos seguras, a evitar desperdícios? Quanto pesaria a vasilha, no fim da colheita?
Não seria mais óbvio que a tarefa fosse empreendida por homens, de estrutura
física mais robusta? Sim. É verdade. Mas eles andavam no campo, em lutas
diárias pela sobrevivência, só interrompidas em domingos de missa e roupa
lavada.
Certo, certo, é ter esta imagem idílica
desafiado poetas, músicos e pintores. Na poesia trovadoresca, medieval, a fonte
surge como local de encontro da"amiga" com o "amigo", longe
dos vigilantes olhares maternos:
- Dizeis filha, minha filha formosa,
porque
tardaste na fonte fria?
- - Tenho um
namorado. (versão actualizada).
José Afonso musicou a redondilha, também
camoniana, "Na fonte está Leanor". Francisco Fanhais interpretou uma
adaptação neo-realista de "Descalça vai para a fonte". Também nesse registo
estético glosou António Cabral, o grande poeta do Douro humano, o mote
"Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura: / vai formosa e não
segura". Começa, assim, a glosa:
Se tivesse umas chinelas
Iria
melhor...; mas não:
co
dinheiro das chinelas
compra
um pouco mais de pão.
Virá
o dia em que os pés
não
sintam a terra dura?*
Na pintura abundam interpretações realistas
da mulher jovem, vestida de longas roupas, equilibrando com mestria um pote de
barro. Calcule-se que nem um Salvador Dali pré-surrealista escapou ao fascínio.
Em La Mujer del cántaro encanta-nos,
com as suas pinceladas coloridas, reminiscência de um impressionismo de pintor
com catorze anos. Só que, neste quadro, o cântaro acrobático equilibra-se
sozinho. Deixa livres mãos em descanso, contornando anca bamboleante.
Vejam, que vale a pena!
*
In, Poemas Durienses
M.
Hercília Agarez
Vila Real, 25 de Agosto de 2018
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