quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Tecer memórias


Foto: Miguel Guedes



A eternidade vive nos momentos sem tempo.

As manhãs despertavam em graça.
Como um rastilho espalhavam a luz, numa promessa de mais um dia de intenso calor.

Era Verão.
Lembro-me da minha casa de portadas encostadas, a partir do início da tarde, para se manter fresca.
O cheiro a fumo das trincheiras a arder, da linha do comboio, subia pela rua entrava nas casas.
Por vezes, cheirava a alcatrão e o barulho da máquina, juntamente com o calor entorpecia os sentidos.

Da padaria em frente, ecos, restos de conversas quase murmúrios.
Depois do almoço algumas pessoas faziam a sesta, mesmo que breve.
O rio morno e lânguido, convidava aos banhos, à brincadeira, e os meninos de câmara-de-ar ao pescoço, de cabelos desalinhados e sorriso rasgado, passavam ligeiros à minha porta.

Não me recordo de nenhum rosto.
Mas sei que um pouco da alma de cada um, ficou comigo.
Eram dias de completa felicidade para mim.
Lembro-me de esperar ansiosamente por uma menina minha amiga, que vivia no Porto e ia todos os anos passar uma parte das férias ao Douro, a casa da Avó.
Tardes de sonho. Entre brincadeiras, jogos e conversas soltas e despreocupadas.
O lanche preparado carinhosamente pela Avó, depois, a luz do fim da tarde a cair sobre a quinta...o cheiro do rio a entrar nas narinas, a ocupar a minha memória, tal como o rosto da menina.
Para nunca esquecer.
Das noites de Verão, recordo as vizinhas sentadas à porta de casa, onde sempre corria uma pequena aragem.
Do cão às manchas que apareceu lá na rua, a dormir no passeio.
Dos candeeiros de luzes amarelas.
E do braço apoiado no parapeito da janela do meu Avô, enquanto fumava o seu cachimbo de aroma doce, sentado no seu cadeirão.
De ir dormir sempre em paz, de janelas abertas como se o mundo inteiro fosse um lugar confiável.
A lua inteira no meu quarto.

Recordo as festas da Sra. do Socorro, da espera da procissão na rua dos Camilos.
Das colchas de várias cores debruçadas nas janelas... Da solenidade, fé e alegria no rosto de cada pessoa.
Do cheiro dos "croissants" do Grande Ponto, que a minha tia nos comprava para o lanche.
Era um dia de festa memorável.
Das festa na Alameda, do fogo-de-artifício a cair sobre o rio.

Memórias de outros Verões.
onde muito do passado anda de mão dada com o presente,
e o tempo parece uma ilusão.
Talvez a eternidade seja um lugar dentro de cada um de nós.
Onde tudo vive.

Apesar de grandes intervalos de silêncio.

Ana de Melo

3 comentários:

  1. Gosto de histórias ..como esta ..

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  2. É uma descrição.. Com factos e lugares que muito me dizem como Reguense!
    Muito mais poderia ser recordado, mas o jardim Alexandre Herculano foi um dos espaços que desapareceram na nossa cidade, que eu lamento profundamente!

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