Bombeiros da Régua - anos 30/40 |
Relacionam-se com os nossos bombeiros as
memórias dos meus primeiros raciocínios.
Estivesse onde estivesse, a brincar, a comer
ou a dormir, logo acorria ao ruído marcial da sua passagem. Não ia longe o
entusiasmo que me tinha arrancado ao que estava a fazer. Logo o meu espírito
começava a intrigar -se com a rigidez daquelas fileiras, a limpeza daquelas
fardas e a refulgência daqueles machados. Toda a gente me dizia que os
bombeiros, mal tocavam a fogo os sinos do Peso e do Cruzeiro, acorriam, sem
demora, à casa que estivesse a arder. Mas... como podiam correr, assim, em duas
fileiras e com aquele passo? Depois, parecia-me impossível ficarem sempre como
a prata as machadas, sendo a de partir a lenha em nossa casa uma vergonha de
bocas e negrume, além de lhe estar sempre a sair o cabo... O que mais me
intrigava ainda era a limpeza das fardas. É que eu, com duas voltas no quintal,
sem apagar fogo nenhum, ficava logo com o bibe a merecer umas surras da minha
mãe.
Receio
bem que o meu desejo de ser bombeiro não tenha sido tão puro como o de todas as
crianças do mundo. Lembro-me perfeitamente de quando me apeteceu ser bombeiro.
Foi logo a seguir a um grande ataque de inveja. É melhor contar tudo
inteirinho...
Foi
numa tarde de calor e de tourada. O Cimo
da Régua era um mar de gente que se agitava de cada vez que aparecia um
figurante de corrida, já vestido para o efeito. Eu andava ali bem seguro pelas
mãos enormes de meu pai e de meu avô. De
vez em quando, ouvia-se uma corneta que me enchia de entusiasmo e de medo.
Houve até um certo pânico, quando um cavalo de grande pluma vermelha subiu o passeio.
A certa altura que vejo eu? Um bombeiro de palmo e meio aos ombros de um
homenzarrão!
Os meus olhos nunca mais se despegaram
daquele capacete de oiro e daquela machadinha de prata... Quando a inveja me
deixou falar, perguntei a meu pai:
-
Aquele menino é bombeiro?
-
Não... é a mascote!
- É o
filho do Zé Pinto – disse-me, depois, voltando para o meu avô.
Eu não sabia, é claro, o que era ser mascote. Mas fiquei a saber,
dolorosamente, que as crianças podiam usar farda, capacete e machadinha como os
bombeiros grandes.
É bem certo
que neste mundo é que elas se pagam. Deus, na sua infinita ironia, acabou por
me fazer bombeiro, cerca de trinta anos depois do meu ataque de inveja. Vim a ser Presidente da
Direcção por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos. Não pensaram na
minha desesperada falta de tempo...Tive de
abandonar com o dedo imperioso da profissão espetado nas costas.
Tudo
acabaria muito bem, se ficasse por aqui. Mas é que eu viria a ter anos depois,
a sobrinha mais travessa que Deus ao mundo deitou!...
Um dia, num chá de
certa cerimónia e sem vir a propósito, saiu-se com esta:
- O meu tio já foi bombeiro, mas teve que sair porque
não apagava nada.
Os risinhos das senhoras, mal
disfarçados, atravessaram-me como alfinetes...
De cada vez que me pregava esta
partida, tentava fazê-la compreender que o meu papel de Director não era ir aos
incêndios, nem apagar fosse o que fosse, por mais que as coisas ardessem à
minha volta. Em vão procurei convencê-la de que os bombeiros também
têm escritório com secretárias cheias de papéis...
De cara fechada e olhos trocistas dizia sempre:
- Sim...sim...
Paguei bem paga a inveja que me fez o capacete e a machadinha daquele
bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão, numa tarde de calor e de
tourada.
Camilo de Araújo Correia
Um "belo" texto ...De "aromas" delicados ...
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