Deve ter acabado de chover nesta terra adormecida na borda d’água deste rio de mau navegar. Da terra molhada levantam-se aromas de vida e dos plátanos majestosos caiem gotas cristalinas que me entram pelos olhos adentro. É tempo de espreguiçar a alma... Assim falou o misterioso viajante, segundos antes de adormecer no único banco do Moledo aonde o Sol da tarde ainda conseguia chegar.
Como ali tinha ido parar, ou porquê, não se sabe muito bem, mas isso era algo que o não importava... pensou, imediatamente antes de ouvir o sussurro das águas apressadas que o transportavam ao barulhento e majestoso Salão de Festas do Hotel Gomes.
Entre o Grande Hotel das Termas, a Estalagem do Almeida, o Petit-Hotel e o famoso Vilhena, passeavam os sapatinhos balneares das senhoras aquistas, protegidas pelas sombrinhas à brasileira, ora pela manhã, ora ao fim da tarde de regresso dos sulfurosos banhos. Ansiosas pela reconfortante refeição, com serviço de mesa recomendado com credenciais da monarquia, e à espera do “corte-e-costura” de língua que lhes animavam as noites de rescaldo duriense, enquanto os seus extremosos maridos se deleitavam nos prazeres de jogos, proibidos ou não, entre fumaças de charuto que condimentavam cálices de vinho fino.
E eis que outra vez a fachada do Hotel Gomes regressa ao espelho subconsciente do misterioso viajante para lhe trazer um sorriso balzaquiano capaz de atazanar as mais sossegadas almas.
Enigmaticamente por entre eminentes juristas em fim de carreira e bonacheirões comerciantes, deambulava o nosso viajante em busca de um lugar onde pudesse escrever um tranquilo postal. E, descobriu bem perto um harmonioso jardim de hortênsias floridas e esplendorosa begónias, sobranceiro ao rio. Faltava um tinteiro que um criado de invejável delicadeza rapidamente pousou a seu lado.
Finalmente escreveu: “Caldas do Moledo, 28 de Julho de 1925- Minha muito querida. Cheguei ontem à noite e apesar do isolamento e da falta do bulício é um encanto onde se passa dias admiráveis. O vale enorme que tem por sopé o Rio Douro, constituído por uma escadaria de parreiras e enorme vegetação. Não calculas querida amiga que ao admirar estas belezas só tenho em pensamento o não poder transformar em realidade o sonho que há tantos anos me traz absorvido”.
Era aqui a pouco menos de uma légua da então importante vila da Régua, viviam-se contrastes que oscilavam entre o borbulhar da natureza e os trompetes da noite e que tudo transformava em poesia.
É neste ambiente, encaixilhado num recanto do Douro – as Caldas do Moledo – que às oito horas da tarde do dia 15 do mês de Março do ano de 1902 nasce o filho dos donos do célebre Hotel Gomes, Antão de Moraes Gomes, filho legítimo de António Augusto Gomes e de Dona Sara de Moraes Gomes.
Assim reza o seu verdadeiro assento de nascimento, com o n.º 20 desse ano emitido pela Conservatória do Registo Civil de Peso da Régua. (Quatro dias antes daquele que muitos dos seus admiradores afirmaram e até escreveram).
Ninguém diria que aquela criança, que como todas se pressupõe bonita e rechonchuda, viria a deixar este mundo tão brevemente, com apenas vinte e quatro anos, vítima de meningite tuberculosa que o transportou até às trevas do Granjal, em Sernancelhe, a aldeia natal de seu pai. Todavia, foi enorme o seu curto percurso pela efémera vida terrena: «Devido ao seu temperamento irrequieto e anseios de independência absoluta, chegou por vezes a lutar com a miséria, que procurava ocultar estoicamente, até aos seus mais íntimos, que teriam um prazer imenso em afastar-lhe da vista esse negro espectro..» - afirma com propriedade e conhecimento o abade José Castro.
- Eu sou Antão: - Fui santo e fui pastor,
Voltei de novo, ao mando do senhor,
Tanger as vossas almas para o Céu
Assim se definiu o poeta, e bem, dirá a nossa assumida humildade, sem contudo deixar de concordar com João de Araújo Correia que na sua voz autorizada afirma: «Santo e Pastor? Poeta é o que fio o Antão de Moraes Gomes. E mereceu o título...». Esta sábia observação é tanto mais lapidar quanto se observa o facto de o poeta o ter conseguido ser com apenas uma obra publicada em vida - «Antão era Pastor», que a Companhia Portuguesa Editora Lda, do Porto, arriscou publicar, em data incerta, apenas se sabendo desta aventura três pormenores de vulto.
Não confiando no tipógrafo, Antão decidiu ditar ele próprio o livro, soneto a soneto. De todos os originais conhecidos, todos se encontravam escritos asa lápis. O seu conteúdo foi gerado entre 1920 e 1923.
Depois de ler «Antão era Pastor» ficam os traços bem definidos da poesia, do poeta e do seu estilo, da sua musicalidade e do seu conteúdo metafísico e espiritual? Pergunta-se. Chegará este livro para definir a alma do poeta?
Independentemente da natural ingenuidade que o leva a escrever aos catorze anos a célebre lírica de inocentes sextilhas « A Mariquinhas», não é possível analisar o peso do conteúdo de Antão de Moraes Gomes sem digerir os cerca de trinta sonetos inéditos que após a sua morte deram à página pela mão de um Abade de Tarouca – José Castro – que os fez publicar no semanário “Bandarra” de Lisboa.
Contudo, já antes o tinha descoberto o então célebre poeta da capital Afonso Duarte, numa sua visita às termas, fazendo disso referência em carta dirigida ao mestre Osório de Oliveira, de Coimbra, escrevendo a dado passo: « ... e os que morreram os vinte anos, como esse extraordinário moço que eu conheci numas termas do Norte, no Moledo, quasi desprezado de todo o convívio, o meu querido Antão de Moraes Gomes. Que galeria de mortos, amigo e de um real valor eu tenho aqui na minha estante- os meus mortos sem que eu saiba ou possa falar deles!».
Ao encontro deste lamento compreendido vem João Araújo Correia, ao referir-se ao poeta na relação com o seu tempo e lugar: « ... passou despercebido no seu berço... a Régua se reparou em Moraes Gomes, foi devido a umas gravatas berrantes ou coletes de alta fantasia que levava ao cinema...» para mais adiante salientar: «... Antão de Moraes Gomes, com gravatas e coletes, cometeu o pecado de Balzac em ponto pequenino».
Assim enquanto no seu livro único, e por detrás de uma descrição eivada de algum bucolismo, o poeta retrata as suas preocupações quotidianas, ambiências terrenas e as liga sempre ao fenómeno sagrado, chegando a dialogar de perto com a morte, nos seus poemas soltos e inéditos do Bandarra, o nosso esquecido Antão despe-se completamente, e deixa transparecer paixões enigmáticas e valores, resumos de vida e certezas de morte, que a cada passo se encontram em versos e estrofes:
Quando vem Maio, com seu ar de festa,
Em ti negra saudade se adivinha:
E a tua sorte bem igual à minha,
Já dos nosso bons tempos nada resta
Ou então, a tal paixão proibida, ou impossível...
Meu Amor, um perfume como o teu,
Mal posso imaginar donde provem...
Certo, não vem da Terra, é odor do Céu
O perfume, que a tua carne tem
A mensagem quase premonitória da morte, a ligação panteísta da imagem humana e terrena ao divino, a mãe natura que o rodeia e a paixão inconfessável e enigmática, são, definitivamente, os temas recorrentes na poesia de Antão de Moraes Gomes, sem contudo deixar de ir ao encontro do pensamento poético- filosófico da sua época.
É neste conturbado rio de correntes e redemoinhos que o poeta Antão se encontra com aquilo a que mais tarde Adolfo Casais Monteiro viria a designar por “ libertação da palavra”. Aqui está o que melhor conseguiu o nosso poeta, que como diria o Abade José Castro « ... bem nítida ressaltará sempre a maneira original, inconfundível das suas poesias, todas inspiradas no meio ambiente. Idealiza muito, escrevendo pouco».
Restam contudo algumas questões que por certo valerá a pena deixar ecoar no salão da especulação poética. Qual seria o enigma de Antão de Moraes Gomes? Seria um pacto com Deus, ou simplesmente um olhar de Deus visto em cada uma das suas criações? E sendo assim porque deparamos com os enlevos de paixões tão ardentes como desconhecidas?
Para este poeta, para este homem de poucos rastos, volto aos pensamentos do Abade: «Deus o tenha agora à sua mão direita ... Do Céu nos fale o ilustre morto!...».
É aqui que o súbito toque de um sino distante que ecoava por todo o vale nos faz regressar ao misterioso viajante, perdido na famosa avenida dos fabulosos plátanos, entre os grandes edifícios das termas e as calmas águas do rio.
Nas suas mãos, podia ver-se ainda um postal ilustrado, meio por escrever, mas que agora seria bastante pequeno para este enorme infinito duriense de memórias, de intensos aromas e de poesia.
A esta hora, já o rio respirava a bom dormir e a cálida noite esfriara. Havia uma penumbra envolta nas coisas, enquanto alguém passeava, devagarinho por entre as sombras dos enormes plátanos, olhando para a outra margem, com um livrinho de poemas para ler.
Acreditem ou não, ainda hoje não tenho a certeza, de quem ali teria estado, sem pressa de chegar à eternidade.
Se fui eu num regresso feliz aos lugares da minha infância, ou se o próprio poeta, que ali continuava, à procura de todos nós.
28 de Julho de 2000
José Alfredo Almeida
Um "texto" para ler , atentamente.
ResponderEliminarGostei , muito!
Belo momento de leitura!
ResponderEliminarNão conheço esta obra, mas confesso que esta leitura me deixou bastante inquieta, não só pela curiosidade como pela poesia das palavras.
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