terça-feira, 31 de março de 2020

Dias de dor

Foto:josé alfredo almeida 




Eu não conheço nenhuma oração mais bonita do que aquela com que os antigos shows da Índia terminavam:

"Que todos os seres vivos permaneçam livres da dor".

Arthur Schopenhauer

segunda-feira, 30 de março de 2020

Ao encontro da Primavera

Foto:josé alfredo almeida



23 de Março de 2020


    Aqui atrasado, expressão de sabor popular, um inspirado legislador estabeleceu regras de procedimento a cumprir por utentes de bens e serviços, em situação de fila de espera. E vai daí, encarregou designer credenciado de criar suporte visual que materializasse a sua ideia filantrópica. Concentrado no isolamento do seu posto criativo, lesto foi ele a criar uns bonecos eloquentes, em fila indiana, cada qual no seu posto. Depois da imagem de um handicapé em cadeira de rodas, a de um idoso, a de uma inequivocamente grávida, de barriga a indiciar parto próximo e, por fim, senhora de menino ao colo. (A propósito desta, vem-me à ideia o poema de A. M. Pires Cabral - “Mulher com filha ao colo, em Dezembro”).
    Limito-me a chamar a atenção para os excessos limitativos do meu representante. Além da exagerada curvatura dorsal, o velho, careca, é apresentado com uma mão nas cruzes, outra na bengala. Nos tempos que correm, aquilo não é terceira idade. Será, isso sim, uma quarta adiantada...
    Até hoje, nunca reivindiquei os meus direitos seniores, a não ser nos descontos de viajante ou de frequentadora de cultura, esses rebuçadecos com que adoçam os nós outros, outra vez crianças. E não o fiz porque posso dar com alguém, do outro lado do balcão, afectado por miopia grave. Sendo o caso, perante a minha direiteza, só o B.I. pode safar-me. Sei bem que, na melhor das hipóteses, me espera qualquer um tipo de auxiliar de locomoção. Tivesse eu um bastão encastoado em prata! Havia de parecer uma “daquelas senhoras como só havia dantes”, de que fala Gedeão no poema “Mãezinha”…
   Adiante, embora atrás não venha gente.  Hoje, pelo meio dia, muni-me da lista das faltas de material, acumuladas há uma semana, e rumei ao supermercado mais próximo. Escolhi o dia. Esperei por este dia. Quis verificar, com olhos de rua, se a Primavera tinha obedecido às únicas leis por que se rege. Sim, obedeceu. Encontrei-a esplendorosa, desfazendo-se em sorrisos verdes, apenas de olhar interrogativo e desolado perante o eclipse (quase) total do género humano, a não confundir com Manuel Germano, como aconselha Mário de Carvalho.*
   Aí estavam elas, as árvores em folha, mais adiantadas umas do que as outras.  Aí estavam as flores em flor ou a caminho disso. Céu em azul integral, sol morno,  brisa breve.
    Fiz o curto percurso como se ninguém mais morasse por estas bandas. Espaços viários e pedoviários estavam por minha conta. Ao aproximar-me do sítio do fornecimento de bens de primeira necessidade ainda sobreviventes, àquela hora, deparei com três consumidores em espera, com idade de serem por mim ultrapassados. Puxando, em estreia, pelos meus galões etários, perguntei ao segurança, com a devida distância e humildade, se podia entrar. Que não, que tinha de me pôr na fila. Insisti só um bocadinho. Pediu-me o cartão do cidadão ou equivalente. Nicles. Invoquei um decreto cujo número e data desconheço, mas nada. Nicles. Meti a viola no saco e lá fui, de monco caído e rabo entre as pernas, para o lugar competente.
    Melhorei a disposição ao verificar a existência de tudo quanto procurava, incluindo a marca de ração a que a Miquelina se fidelizou, ela cujo nariz detecta e rejeita todo o comestível felino, molhado ou abiscoitado, abaixo de dois euros, de acordo com o seu pedegree de portadora de genes siameses.
    Ao sair, prometi à autoridade de serviço não voltar a apresentar-me no local sem identificação e agradeci-lhe, de sorriso sonsamente irónico, o ter-me julgado vinda ao mundo um bom par de anos mais tarde. Ficámos amigos, pelo menos até ao fim do seu desempenho nestas funções disciplinadoras. Um amigo fardado, ainda para mais!

* in O Beco das Sardinheiras



M. Hercília Agarez
Vila Real, 30 de Março de 2020

domingo, 29 de março de 2020

Remorsos

Foto:josé alfredo almeida



Reza comigo, se te  queres salvar.
Deus é pura poesia
E o poema uma humilde petição
No templo sacrosanto da eternidade
Reza comigo, a ler-me e a memorar
Os versos que mais possam alargar
o teu entendimemento
De ti, do mundo e do negro inferno
De cada hora
Purificada neles, terás então
No coração
A paz aliviada que te falta agora



Miguel Torga

O minuto certo

Foto:josé alfredo almeida




Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza que pensavas em mim. Que me pensavas por dentro. Que era eu a tua fantasia, o teu banco de trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor.
Na cidade do meu sono, havia palmeiras onde alguns repetiam putas e charros e atiravam pedras ao rio. Mas eu nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço. Eu nunca abri as pernas, entendes? Nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca quis de ti uma continuidade, mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes? Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o pequeno-almoço, a ternura. Nunca te disse que me abraçasses por trás, que adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e tu por dentro de mim.
Queria de ti um minuto. Um minuto.

Filipa Leal

sábado, 28 de março de 2020

Sol nas fotografias

Foto:josé alfredo almeida



Dia após dia o sol passa
 pelas fotografias. Vejo-o passar nos sorrisos felizes que fizemos um dia.



Daniel Maia-Pinto Rodrigues

quinta-feira, 26 de março de 2020

Tenho o privilégio de não saber quase...

Foto:josé alfredo almeida 


Tenho o privilégio de não saber quase tudo. 

E isso explica 

o resto


Manoal de Barros

sábado, 21 de março de 2020

Dias suspensos

Pintura de Margarida Almeida



De tudo vai ficando tão
simples que asusta. A gente vai
perdendo as necessidades,
vai reduzindo a bagagem


As opiniões dos outros, são realmente
dos outros, e mesmo que sejam sobre nós;
não tem importância.


Vamos abrindo a mão das certezas
pois já não temps certeza de nada
E, isso não faz a menor falta.


Paramos de julgar, pois não existe
certo ou errado e sim a vida
que cada um escolheu experimentar.


Por fim entendemos que tudo que
importa é ter paz e sossego, é viver
sem medo, é fazer o que
alegra o coração naquele
momento. E só.


Mário Quintana

Dias incertos

Foto:josé alfredo almeida





"A vida é um caminho de sombras e luzes. 
O importante é vitalizar as sombras e aproveitar as luzes."



Henri Bergson

Dias adiados

Foto: josdé alfredo almeida


(...)

 Não deixes nunca de sonhar, 
porque os sonhos tornam 
o homem livre. 



 Walt Whitman

quinta-feira, 19 de março de 2020

Meu pai




"Pode acontecer que no fim um homem se enamore pela própria vida"

Manuel Vilas



O meu pai é uma boa pessoa, leal e séria: é um homem muito responsável. O meu pai, José, a quem eu devo tudo na vida pela pessoa que hoje sou. 
O meu pai, não sendo professor - como é o meu irmão António - deu-me as primeiras lições de vida e alguns exemplos de civismo e de cidadania que não se apreendem nos livros da escola que servem para aprender a escrever, a ler, a contar e fazer mapas e equações matemáticas que raramente completam os nossos sonhos de criança. 
O meu pai tem uma verdadeira paixão pelo seu grande amor (a minha mãe Fernanda). O meu pai é um homem bom e generoso. Nunca me ensinou a mentir, a enganar, a ser falso e a ser cruel com ninguém. Ensinou-me a honrar os mais fracos e os desfavorecidos. A valorizar quem nos ajuda e entra na nossa vida como uma verdadeira joia de família e que, mesmo depois, não revele qualquer valor sentimental. 
A vida é uma coisa séria, mas por vezes, é uma coisa simples. Quem vem a esta vida quando as pessoas se comportam com dignidade e respeito. Quem vem a este mundo não pode ser feliz se quer prejudicar a vida de alguém que nunca lhe fez mal. Quem já fez isto levianamente não respeita ninguém, mas na verdade, nem se respeita a si próprio. Não pode ser um ser humano, nem viver com remorsos que não é um sentimento para quem está disposto a passar por cima de tudo e todos para alcançar qualquer fim e para fazer prevalecer os seus interesses e egoísmos pessoais. 
O meu pai ensinou-me a ser verdadeiro, sério e leal. Quando não agimos assim perdemos a dignidade e deixamos de viver em paz. 
O meu pai também, muitas vezes, sofreu injustiças, não foi tratado como ele merecia por ser um homem bom e respeitador, mas soube passar-me este ideal de que para ser bom só preciso de ser um homem humilde. Basta-te isso, e um dia tens a prova que és capaz de lá chegar. 
O meu pai deixou-me este seu legado para ser o meu regulador da minha consciência. 
O meu pai também me ensinou que somos nós que temos de ir em busca da nossa felicidade e do amor. Ele já conseguiu isso tudo, e se não fez mais foi porque teve outras prioridades para resolver. 

A vida é assim… 
O meu pai está muito grato com ela. Ela deu-lhe o mais importante que se pode ter: os filhos que estudaram e foram o que eles quiseram ser e os netos a viverem uma outra vida, a que ele desejou para não o esquecerem. Ele é, à sua maneira, um vencedor que subiu ao pódio com orgulho, esforço, dedicação e muito trabalho para vestir a sua camisola da sua felicidade. 
Mas, o meu pai não me ensinou tudo da vida. Confesso que agora, à beira dos seus 82, devia dar-lhe mais atenção e dizer-lhe umas merecidas palavras de conforto e reconhecimento. Culpo-me de não o escutar mais vezes e de lhe dar razão em casos reais da minha vida em que a covardia, a maldade arrogante e perversa nunca devia triunfar. Tenho muito a aprender com o meu pai. Vou estar mais tempo com ele apenas para o poder ouvir. 
Ainda bem que o meu pai é a nossa memória, ainda presente na minha vida. 

quarta-feira, 18 de março de 2020

Agora nunca é tarde

Foto:josé alfredo almeida




Por vezes, de um dia que vivemos,
de um filme, de um poema... por vezes de alguém,
conservamos uma palavra.
Não saberemos explicar porquê,
mas essa palavra aloja-se dentro do nosso pensamento,
atravessa vagarosamente os nossos silêncios,
fecha-se à chave dentro de nós.




José Tolentino Mendonça

Eternamente Douro-986

Foto: josé alfredo almeida

Eternamente Dour-985

Foto:josé alfredo almeida,

domingo, 15 de março de 2020

A mais bela linha férrea

Foto:josé alfredo almeida



"Tenho saudades fundas da doçura agreste do Douro. Do meu Douro, majestoso e belo e misterioso e assustador e acolhedor, magnífico caminho de água que corre em paralelo à mais bela linha férrea que a incúria e a estupidez humanas deixaram morrer em Portugal."




Teresa Pirrazo Beleza

Desassossego

Foto:josé alfredo almeidal




"Sabemos o que somos, mas não sabemos o que poderemos ser."



William Shakespeare

Purgatório

Foto:josé alfredo almeida

sábado, 14 de março de 2020

Onde tudo acaba

Foto:josé alfredo almeida




Tenho saudades do que não possuí, 
Do que sonhei, do que imaginei. 
Por palavras vãs fui traída,
E talvez, o sonho mais belo destruí. 
Lamento palavras que disse, 
Actos que tive. 
Pensei e pensei e nada construí. 
Preservo a imagem de momentos fugazes, 
Que podiam ter sido audazes... 
Se apenas uma palavra 
Tivesse sido dita por ti.


Patrícia Cunha Albuquerque

Eternamente Douro-980

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-979

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-978

Foto:josé alfredo almeida

sexta-feira, 13 de março de 2020

Tudo é azul

Foto:josé alfredo almeida


 13.03.2020
Entre a Régua e o Pinhão



As coisas simples são indissolúveis.
Não havendo nelas contradição,
a tendência é para serem duráveis.




Agustina Bessa-Luís

Quadro sem assinatura

Foto:josé alfredo almeida


                                                                                              ……………………………...
                                                                                              Ou não fosse o rio um espelho
                                                                                              antes de rio.

                                                                                                          A.M.Pires Cabral


    Brancas, as nuvens. Hoje. Brancura pacífica, sorridente. Mantêm-se no respeito de ordens recebidas. Hoje, meros apontamentos decorativos. Nada de anúncios, nem prenúncios, nem indícios de águas a cair. De águas a vir. Hoje, desincumbidas da função de manda-chuvas. Assim, airosas, inofensivas, femininas, não receiam o veredicto do rio. Não lhes falta auto-estima…
    Ele, o rio duriense com costela transmontana, na franqueza do Entre Quem É. Também ele tem nuvens, essas sortudas bafejadas com o dom da ubiquidade, tantas vezes invejado por humanos seres.
   Rio. Beleza, serenidade, movimento, em estado líquido. Não parece estugar o passo para  depressa atingir a foz. Gosta da doçura das suas águas, da irrequietude dos seus hóspedes, num rodopio de fuga a canas de pescadores, de minhoca em riste. Gosta de contemplar, com todo o tempo do mundo, margens imponentes, de socalcos encavalitados uns sobre os outros, desafiando alturas. Montes promessas  de boas colheitas, montes onde cepas tortas e direitas se despem no fim da festa. Tempo de tudo, para tudo.
    Uma casinha branca intromete-se na paisagem. Mete portas e janelas onde não é chamada. Terá gente dentro? Quem a plantou ali em isolamento,  órfã de vizinhos? Melhor é casa sem gente do que gente sem casa.

    Começam a impacientar-se os ramos e os galhos, negrume descendente, a enlutar claridade colorida. Tenham calma! São para vós as últimas palavras – last, not least. Dizei lá à vossa árvore-mãe que oleie as engrenagens e acelere a produção de folhas e de flores., não vá chegar atrasada à recepção oficial da Primavera...

M. Hercília Agarez
Vila Real, 13 de Março de 2020

Aos homens se deve esta luz







( Inédito do escritor e  poeta José Carlos Barros) 

terça-feira, 10 de março de 2020

segunda-feira, 9 de março de 2020

Nada é eterno

Foto:josé alfredo almeida



" abrindo um caderno antigo
por descobrir
antes eu era eterno"



Paulo Leminsky

Nobreza

Foto: josé alfredo almeida



"Quem já não consegue ver as consequências dos seus actos, perde a sua natureza, a sua bondade, a sua dignidade humana e, apesar de não respeitar ninguém, já não se respeita sequer a si mesma! 
Vive na total cegueira!"

Uma maneira de sentir

Foto:josé alfredo almeida




"O que conta não é o que se diz, 
mas o que se faz"

sábado, 7 de março de 2020

Porto de abrigo

Foto:josé alfredo almeida


Não expliques nenhum verso.
Peço-te.

Deixa que a luz tombe
sobre as janelas quase abandonadas
da varanda

e que as sombras de ferro forjado
que perduram nas cortinas
mesmo anoitecendo

sejam a única coisa intacta
no interior do poema.


 Sandra Costa

Alma azul

Foto:josé alfredo almeida


A alma não tem segredo 
que o comportamento não revele.


Lao-Tsé

sexta-feira, 6 de março de 2020

Como o silêncio dissesse tudo

Foto:josé alfredo almeida



Agora que o silêncio é um mar sem ondas, 
E que nele posso navegar sem rumo, 
Não respondas 
Às urgentes perguntas 
Que te fiz. 


(...)
Mas o tempo passou, 
Há calmaria... 
Não perturbes a paz que me foi dada. 



Miguel Torga

Rio triste

Foto:josé alfredo almeida

Rio de solidão

Foto:josé alfredo almeida

Sou tua






...

é tudo o que me resta: estar
de noite às escuras a pensar em ti



Ana Luisa Amaral