segunda-feira, 6 de julho de 2020

Momento de verdade





a minha avó repete:


o tempo cura a ferida
mas não cura a cicatriz


e nenhum outro poema
de nenhum outro poema me falou tão alto ao ouvido


Inês Francisco Jacob

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Barco na paisagem-450

Foto:josé alfredo almeida

Perder o valor





Há coisas que nunca tivemos em crianças e perdem o valor para sempre. Aquele sempre dos primeiros dez anos, onde o tempo, as pessoas, as coisas parecem enormes e indestrutíveis.

Disfarçar-se de relâmpago ou de outras coisas impossíveis, comer todos os chocolates, ter uma bicicleta igual à do estúpido do vizinho, fazer as coisas que os adultos escondem atrás da porta dos quartos, retribuir a bofetada aos nossos legítimos superiores, querer morder com justa causa tanta gente no mundo e só poder no escuro morder uma almofada. 



Inês Lourenço

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Situação equívoca





 Não te esganes, ó menina,
não faças tamanhã asneira.
Se não sou a tua sina,
não falta quem me bem queira.

És baixa e deslavada
e eu sou um manequim.
Não fiques incomodada,
nem tenhas pena de mim.

- Bem sei que não te mereço.
Por que me arrasta a asa?
Se acaso bem te conheço

queres criada para a casa...


M. Hercília Agarez

Eternamente Douro-1019

Foto: josé alfredo almeida

terça-feira, 30 de junho de 2020

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Nada

Foto:joé alfredo almeida



 Hoje és todas as coisas que deixaste para trás
– uma casa abandonada de janelas estripadas –
és todas as coisas que me prometeste e esqueceste.



Alice Turvo

domingo, 28 de junho de 2020

Um lugar para ficar


Foto:josé alfredo almeida



Cansado de escutar o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração acalentas o sonho: 
um barco no mar a afundar-se : sem capitão, sem ratos, sem espavento 
um único tripulante a bordo: tu



Rui Caeiro

Onde estas?

Foto: josé alfredo almeida



 Já não sou mais criança para esconder o meu rosto entre os dedos e aparecer num sorriso rasgado,
respondendo à tua pergunta:
_Onde estás?
_ Estou aqui!
E tudo recomeçava.
Depois eras tu.
_Estou aqui!


Não te escondas tu de mim,
não te escondas.


Os dias são imensos e
o silêncio é tão grande. 
Onde estás?
Doem-me as perguntas como punhais cravados no mais fundo de mim.




 Ana de Melo

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Estranha paisagem

Foto:josé alfredo  almeida


Trair a confiança de alguém é para mim o maior dos defeitos que o ser humano pode ter.

Sou "impermeável" à compreensão da traição.
Preciso de não andar em bicos de pés, para poder apanhar em flagrante quem me apunhalou antes, a alma.
De dizer o que sinto com o coração nas mãos, sem ter receio de ser mal interpretada.


Confiar, é estar nu. É como nascer.
É o sentimento mais puro, talvez o único que nos redime e salve. Que nos define como gente.
Seja com pessoas ou animais.
Não podemos trair quem dorme nos nossos braços e pensa que está seguro.


Quem riu e chorou connosco,
quem mostrou toda a sua fragilidade e afinal não o escutámos, não o vimos.
De repente é só um estranho.

Foi sempre.


Ana de Melo

Eternamente Douro-1018

Foto: josé alfredo almeida

terça-feira, 23 de junho de 2020

Noites de ouro

Foto:josé alfredo almeida

Parto com essa ferida. 
Tenho pena de não ter percorrido o teu corpo como percorro os mapas (...)
Tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro. 
Acordado perto de ti
as noites teriam sido de ouro 
e as mãos teriam guardado o sabor do teu corpo. 



Al Berto    

Eternamente azul

Foto:josé alfredo almeida

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Pernas à vela







                                      A coqueteria é a poesia das mulheres
                                        
                                                                               (máxima francesa)



    In Illo Tempore, ou seja, no meu tempo de menina e moça na cidade nascida e criada, estava na moda as jovens, mais púberes ou mais espigadotas, de soquetes ou de meias de vidro, irem passar uns dias ao campo, antes ou depois de Agostos banhados por mares poveiros ou espinhenses, destinos eleitos das famílias destas nossas bandas.
    Para casa de família própria ou alheia, não iam a banhos, iam a ares. Iam ganhar cores, que a cidade dava-lhes uma palidez macilenta. Em geral eram umas lingrinhas, fastiosas, esquisitas de bico, com medo da própria sombra, meladas. Eram as mães que as empontavam, recorrendo a argumentos tão pesados como os fraguedos da serra. Iam de nariz torcido, de monco caído, de sobrolho franzido. Faziam as malas como se fossem para cidade cosmopolita porque outros vestires e calçares não tinham.
   Acabavam por se afeiçoar àquela enchente de ar puro, àqueles odores a terra molhada, a flores bem-cheirosas, àquele sabor de sopa de pote. Eram tratadas como princesas. Chamavam-lhes meninas as raparigas da mesma idade, mas de pobre trajar e  de diferente falar. De mãos gretadas e calosas,  de unhas negras de terra, de rostos tisnados de sois em muitas horas. Brancos, braços e pernas sobrantes de saias e aventais e de mangas de “blúsias”. Branco o que não se vê. Branco o que só vêem os seus homens, que na aldeia os casórios não ficavam para o tarde.

    Esta menina, com ar de já senhora, está fora do sítio. Enganou-se no cenário. Destoa no meio daquelas verduras de folhas aldeãs, sentada naquelas tábuas mal amanhadas, bem empoeiradas, de pregos enferrujados. Para onde pensa que vai com aquela altura de tacões de tango? A música ali é outra. É a do chiar  dos carros de bois e mugidos dos mesmos, é o ladrar zangado de cães engalfinhados, é o bater de roupas nos lavadouros, são todas as manifestações musicais de pássaros em alegria, os descantes de moçoilas frescalhotas, afeitas a tarefas de casa ou de campo. Para onde pensa que vai a perliquitetes com aquela roupa de missa ao domingo? Arregaçou a saia para morenar as pernas com o sol por bronzeador. Nunca tal se tinha visto por aquelas bandas - “Um desaforo, uma pouca-vergonha, isto é a fim do mundo”, murmurava o mulherio despeitado ao fazer o sinal da cruz...

    Era assim, mais ou menos. Lembro-me, a propósito desta irreverência feminina, do nome que se dava, há largas décadas, ao gesto próprio das senhoras de bem quando se sentavam. Instintivamente, em nome da moral e dos bons costumes, puxavam as saias até aos joelhos. Se fosse no tempo da mini-saia havia de ser bonito! Inspirado na designação duma certa elite humanitária em tempo salazarento, capitaneada pela Senhora Dona qualquer coisa Supico Pinto, passou a chamar-se a esse esticar de pano nas coxas  Movimento Nacional Feminino. Bem visto, sim senhor...
   

M. Herília Agarez, 22 de Junho de 2020

sábado, 20 de junho de 2020

Aprender com a vida

Foto: josé alfredo almwida


"A dor faz parte da vida - como faz parte a alegria, a fome, e a vontade de sonhar. Não adianta fugir, porque ela termina encontrando-nos... Mas sua única função é ensinar-nos algo. Aprendamos suas lições, e isso nos basta! "


 Paulo Coelho

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Postal do silêncio

Foto:josé  alfredo almeida





Há momentos infelizes em que a solidão e o silêncio se tornam meios de liberdade.



Paul Valéry

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Postal do verão-76

Foto: josé alfredo almeida



Longa é a viagem rumo a si próprio. 
Inesperada, a sua descoberta... 


 Thomas Mann

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Flor em caixilho de pedra






                                                           Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero
                                                           De não poder confessar
                                                           Num tom de grito, num último grito austero
                                                           Meu coração a sangrar!

                                                                           Fernando Pessoa

    Com tantos dias para encher nesta inactividade caseira, a leitura é o porto de abrigo das minhas angústias, dos meus medos, dos meus vazios, dos meus fantasmas de futuro desacompanhado. Com o encerramento das livrarias, os olhos fugiram-me, cheios de razão, para livros lidos há mais de quarenta anos. Uma obra relida nunca à igual a uma obra lida. Iguais, os textos, diferentes, os olhos e o estado de espírito. Nessa altura, o meu argent de poche ia todo para bibliografia médica e para  congressos, cá dentro e lá fora. Valia-me (e vale-me) a tua biblioteca que a herança paterna veio largamente multiplicar, obrigando-nos a prescindir da decoração de uma parede para dar guarida a largas centenas de exemplares para todos os gostos.
    Tivemos sorte. Nenhum dos teus irmãos se interessava por coisas do espírito. Para eles só a matéria contava, fosse ela dinheiro vivo, afagado com volúpia, fossem bens passíveis de por ele serem trocados. Esse espírito fez deles  homens ricos, com carros potentes, moradias luxuosas, filhos em colégios de meninos-bem, mulheres super-enjoiadas e inúteis. Nós fomos felizes na mediania dos nossos hábitos que não excluía visitas a museus e a exposições, concertos de música clássica, e uma ou outra viagenzita a um estrangeiro europeu onde moram, há séculos, marcas de uma civilização que tanto disse, tanto fez, tanto nos deslumbra, tanto nos ensina.
    Os nossos filhos, que criámos para serem meninos-bons e não meninos-bem, já tinham optado por carreiras no estrangeiro quando, sem piedade nem dó, me deixaste encafuada no nosso ninho de casal e voaste, vá-se lá saber para que  destino. Quero crer que o Céu tinha reservado para ti um espaço exíguo, mas onde cabia uma secretária e uma pequena estante e onde podias fumar o teu cachimbo. Sossega. A colecção que cá deixaste está estimada e encarrega-se de te substituir numa presença  sensual com cheiro a Malboro.
    Li, até hoje, uns seis romances teus-meus. Tiveste sempre um fraquinho pelas literaturas russa e francesa. Calcula que me dei comigo, em páginas de Tolstoi, ao lado (mas com a devida distância...), de Anna Karenina. Foi num momento escaldante do enredo que encontrei esta fotografia a fazer de marcador, invenção moderna a dispensar engenhosas maneiras de não nos perdermos nos passos desconcertantes das personagens.  Parei, pousei o romance e mirei-me, remirei-me. Vi-me a cores. Vi a cores quanto me rodeava. Senti a frescura  desta sombra granítica, proeza escultural da natureza, senti o odor a aldeia, intenso e modesto, e recordei aquele ponto dos nossos encontros de namorados em férias. A minha pasta estava muito grávida porque eu levava comigo os calhamaços de livros e sebentas, cujo estudo intenso me garantiria a transição para o ano imediato.
    Não mais esqueci o que me escreveste na carta de resposta à que era portadora desta surpresa. Como não estou certa se aumento de peso regulamentar implicava alcavala na franquia postal de dez tostões que se aguentou  anos e anos. Minudências! Acho que a legenda tinha o seu quê de poético, apesar do tom baboso de enamoramento à moda antiga - “Uma flor encaixilhada em pedra”. Terei rido? Terei chorado?
    Vou falar-te dos meus achados na arqueologia das tuas estantes. Entre outras coisas, difíceis de enumerar (tu lias que te fartavas…), encontrei: a conta do hotel da nossa lua de mel, postais ilustrados de amigos em viagem, programas de concertos, desenhos infantis do Filipe e do Francisco, recortes de jornais e revistas, tickets de entradas em museus, um subscrito de uma carta do Dr. Faustino com o seu endereço (escrito no triângulo traseiro onde se molhava o dedo na cola seca para pôr à prova a sua eficácia), o menu do jantar das Bodas de Prata do teu curso, uma conta do alfaiate discriminada em letra inclinada, certinha, santinhos das comunhões dos pequenos,  tudo isto encarcerei numa caixa de charutos, a aguardar a prossecução das pesquisas. Que os livros-cofres, em lista de espera, não venham trazer-me nenhum amargo de boca…
   Ah! Já me ia esquecendo (last not least), um boletim do Totobola por preencher. Tu sabias que não se pode ter sorte em tudo na vida...
   

M. Hercília Agarez,  15 de Junho de 2020

domingo, 7 de junho de 2020

Mais tarde

Foto:jpsé alfredo almeida



Parte: como se tivesses de ser esquecida,
deixando atrás uma imagem de sombra. Não
leves contigo as palavras que trocámos,
como cartas, num instante de despedida; mas
não te esqueças da luz da tarde que os teus
olhos abrigaram. Por vezes, lembrar-me-ei
de ti. É como se, ao voltar-me, ainda me
esperasses, sem um sorriso, para me dizeres
que o tempo tudo resolve. Não te ouço; e,
ao aproximar-me dos teus braços, vejo-te
desaparecer. Mais tarde, penso, isto fará
parte de um poema; mas tu insistes. O amor
chama-nos, de dentro da vida; obriga-nos a
renunciar à imobilidade da alma, a sacrificar o corpo a um desejo 
de memória.


Nuno Júdice

sábado, 6 de junho de 2020

Vida

Foto; josé alfredo almeida



Ardam-se mais à esquerda ou mais à direita
mais a vento de sul ou de norte,
mas labaredem-se, sejam fogos que ardem!
Porque pior que a desdita loucura
é toda a gente andar em brasa
mas ninguém chegar a incêndio
E no fim são todos cinza.



 Cláudia R. Sampaio

quarta-feira, 3 de junho de 2020

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Dia da Criança





As crianças são os únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece. Os outros anjos, os das asas, nunca aparecem. Os santos, depois de santos, ficam na bem-aventurança a preguiçar, ninguém mais os enxerga. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só temos realmente as criancinhas…

                                                                                  Eça de Queiroz, A Ilustre Casa de Ramires





   Dia 1 de Junho de 2020. O primeiro da normalidade possível. Talvez seja de bom augúrio coincidir com o dia da criança. Que rima com esperança. Duas palavras nasaladamente doces, confortáveis para almas grandes de gentes grandes. As crianças  sabem o que é ser-se criança.  Criança é gente pequenina, do mamar ao gatinhar, do pedir colo ao desafiar para a brincadeira, do baloiço à bicicleta de quatro pedais. Criança cresce ao centímetro. “Pula e avança”. Ao tornar-se, triunfantemente, eréctil, depois de vários tem-tem, de breves arranhadelas inofensivas, na tenra e rosada carnação, agarra-se aos joelhos onde lhe chega a altura, que lhe são porto de segurança, pára-escorregadelas, passaporte para braços abertos.
    Quando, na manhã de hoje, dia mundial dos de amanhã, se reabriram as portas do seu mundo além muro de casa, as meninas e os meninos de um tão breve ciclo de brincar, terão feito com os pais, na véspera, revisão da matéria dada por mestres outros, de experiência feitos, de ciência informados, de mando encarregues. Como se não bastasse o treino em viver-infantil, o não-ter-com-quem-brincar, o não-poder-abraçar, o engolir-de beijos falados em linguagem de ternura, o nariz enfiado no tablet dos desenhos animados, momentos de sossego para pais exaustos, comungando  do mesmo sentimento de incompetência paternal.
    

    Este ano,  hoje é, fofinhas e fofinhos, um dia especial do resto das vossas vidas. Um dia em que nos prometeram, se nos portássemos bem, a normalidade possível. Vós entrareis pela porta da mesma escola, onde a mesma professora vos receberá a pedir-vos que deixeis os sapatos fora da sala. Encontrareis brinquedos só para vós, ficareis separados dos amiguinhos com brinquedos só para eles, dormireis a sesta em caminha que se vos manterá fiel até ao fim da arrelia. Como trazeis a lição bem estudada (compreendida não é possível), não sereis tentados a esbanjar os vossos abracinhos de saudades, os vossos beijinhos repenicados a que o confinamento retirou o sabor a frutos silvestres.
    Alguém se encarregará de vos explicar uma evidência com que estais familiarizados. Rodeia-vos (à distância, claro) gente mascarada, mas só na cara. Não tem grande graça. Pois é. O carnaval é mais fiche. Estranhastes a falta de coleginhas do peito. Ficai descansados. Eles virão. Há pais com medo por causa dos filhos, como há filhos com medo por causa dos pais. A vossa idade de terem medo vem longe. Agora aproveitai para sorrir, cantar, dançar, pular, zaragatear, fazer perrices, mijices,  dizer palavrões sem licença de entrada em vossas casas. Portastes-vos bem tempo de mais.  Venham daí essas energias, vamos lá puxar por esses músculos, por essas gargantas esganiçadas, por esses golpes de Karaté. É melhor um barulho desarrumado mas feliz do que um tudo direitinho e sossegadinho vestido de tristeza. Mas atenção: distâncias respeitadas, trocas proibidas, mãos lavadas e relavadas, senhoras acarinhadas. Recorram à vossa imaginação mímica e gestual. Verão como conseguem simular beijocas, abracinhos, fiches!, adeuses.
  
    Que esta miunçalha com o dom de acender luzes em velhices sozinhas e escuras, volte depressa a ser “um bando de pardais à solta!”.




M. Hercília Agarez, 1 de Junho de 2020

Rio de afectos

Foto:josé alfredo almeida






"Quantas pessoas te amaram? Quantas amaste? 
O afecto é a melhor forma de saberes o tamanho da tua vida. Ou seja do até onde exististe.
Haverá outro balanço para saberes se ela valeu a pena? " 




VergilioFerreira