Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero
De
não poder confessar
Num
tom de grito, num último grito austero
Meu
coração a sangrar!
Fernando
Pessoa
Com tantos
dias para encher nesta inactividade caseira, a leitura é o porto de abrigo das
minhas angústias, dos meus medos, dos meus vazios, dos meus fantasmas de futuro
desacompanhado. Com o encerramento das livrarias, os olhos fugiram-me, cheios
de razão, para livros lidos há mais de quarenta anos. Uma obra relida nunca à
igual a uma obra lida. Iguais, os textos, diferentes, os olhos e o estado de
espírito. Nessa altura, o meu argent de poche ia todo para bibliografia
médica e para congressos, cá dentro e lá
fora. Valia-me (e vale-me) a tua biblioteca que a herança paterna veio
largamente multiplicar, obrigando-nos a prescindir da decoração de uma parede
para dar guarida a largas centenas de exemplares para todos os gostos.
Tivemos
sorte. Nenhum dos teus irmãos se interessava por coisas do espírito. Para eles
só a matéria contava, fosse ela dinheiro vivo, afagado com volúpia, fossem bens
passíveis de por ele serem trocados. Esse espírito fez deles homens ricos, com carros potentes, moradias
luxuosas, filhos em colégios de meninos-bem, mulheres super-enjoiadas e
inúteis. Nós fomos felizes na mediania dos nossos hábitos que não excluía
visitas a museus e a exposições, concertos de música clássica, e uma ou outra
viagenzita a um estrangeiro europeu onde moram, há séculos, marcas de uma
civilização que tanto disse, tanto fez, tanto nos deslumbra, tanto nos ensina.
Os nossos
filhos, que criámos para serem meninos-bons e não meninos-bem, já tinham optado
por carreiras no estrangeiro quando, sem piedade nem dó, me deixaste encafuada
no nosso ninho de casal e voaste, vá-se lá saber para que destino. Quero crer que o Céu tinha reservado
para ti um espaço exíguo, mas onde cabia uma secretária e uma pequena estante e
onde podias fumar o teu cachimbo. Sossega. A colecção que cá deixaste está
estimada e encarrega-se de te substituir numa presença sensual com cheiro a Malboro.
Li, até
hoje, uns seis romances teus-meus. Tiveste sempre um fraquinho pelas
literaturas russa e francesa. Calcula que me dei comigo, em páginas de Tolstoi,
ao lado (mas com a devida distância...), de Anna Karenina. Foi num momento
escaldante do enredo que encontrei esta fotografia a fazer de marcador,
invenção moderna a dispensar engenhosas maneiras de não nos perdermos nos
passos desconcertantes das personagens.
Parei, pousei o romance e mirei-me, remirei-me. Vi-me a cores. Vi a
cores quanto me rodeava. Senti a frescura
desta sombra granítica, proeza escultural da natureza, senti o odor a
aldeia, intenso e modesto, e recordei aquele ponto dos nossos encontros de
namorados em férias. A minha pasta estava muito grávida porque eu levava comigo
os calhamaços de livros e sebentas, cujo estudo intenso me garantiria a
transição para o ano imediato.
Não mais
esqueci o que me escreveste na carta de resposta à que era portadora desta
surpresa. Como não estou certa se aumento de peso regulamentar implicava
alcavala na franquia postal de dez tostões que se aguentou anos e anos. Minudências! Acho que a legenda
tinha o seu quê de poético, apesar do tom baboso de enamoramento à moda antiga
- “Uma flor encaixilhada em pedra”. Terei rido? Terei chorado?
Vou falar-te
dos meus achados na arqueologia das tuas estantes. Entre outras coisas,
difíceis de enumerar (tu lias que te fartavas…), encontrei: a conta do hotel da
nossa lua de mel, postais ilustrados de amigos em viagem, programas de
concertos, desenhos infantis do Filipe e do Francisco, recortes de jornais e
revistas, tickets de entradas em museus, um subscrito de uma carta do Dr.
Faustino com o seu endereço (escrito no triângulo traseiro onde se molhava o
dedo na cola seca para pôr à prova a sua eficácia), o menu do jantar das Bodas
de Prata do teu curso, uma conta do alfaiate discriminada em letra inclinada,
certinha, santinhos das comunhões dos pequenos,
tudo isto encarcerei numa caixa de charutos, a aguardar a prossecução
das pesquisas. Que os livros-cofres, em lista de espera, não venham trazer-me
nenhum amargo de boca…
Ah! Já me ia
esquecendo (last not least), um boletim do Totobola por preencher. Tu
sabias que não se pode ter sorte em tudo na vida...
M. Hercília Agarez,
15 de Junho de 2020