segunda-feira, 25 de junho de 2018

Desejo uma fotografia como esta

Foto: josé alfredo almeida


Desejo uma fotografia como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria como um vestido de eterna festa.
Como tenho a testa sombria, derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta um certo ar de sabedoria.
Não meta fundos de floresta nem de arbitrária fantasia...
Não..
Neste espaço que ainda resta, ponha uma cadeira vazia.


Cecília Meireles

Eternamente Douro-534

Foto: josé alfredo almeida

Eternamente Douro-533

Foto:josé alfredo almeida 

Barco na paisagem-377

Foto:josé alfredo almeida

domingo, 24 de junho de 2018

Concentração



O livro é um amigo que não engana
(pensamento francês)



    Menino bonito. Penteadinho. Refastelado em sofá de couro. Sozinho. Concentrado. Lê, sorridente, um livro talvez grande de mais para a sua idade. Lido quase até ao fim, em expectativa curiosa de saber o desenlace.
Está frio, lá fora. Um fora onde costuma brincar com amigos vizinhos. Ao pião, às caricas, ao arco. Brincadeiras de passeios de rua de que a trotineta é a maior das aventuras.
    Está compenetrado, o miúdo. Devem estar já feitos os deveres da escola (chamados agora, em tempo de siglas, TPC - trabalhos para casa). A leitura é o seu lazer de interior. Tem o privilégio de ter nascido no seio de família com biblioteca. Leitor infantil promete vir a ser leitor adulto. Leitor adulto, leitor culto.
    Menino bonito. Menino a ler. Penteadinho. Imagem comovente tornada anacronismo. Menino de um ontem sem jogos de consola, sem videos violentos, sem facebooks. Sem tudo o que, num hoje, é moeda de troca entre pais e filhos.
    A felicidade foi, sempre, inerência da infância. Só aumentou o preço...


M. Hercília Agarez

Vila Real, 24 de Junho    

Arte urbana-43

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-532

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-531

Foto:josé alfredo almeida

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Rio envergonhado

Foto:josé alfredo almeida


    Parece que encolheste, que estreitaste. Estás envergonhado ou ciumento? É legítimo. A folhagem das videiras, de crescimento saudável e rápido, exibe-se, prazenteiramente. Cheias de prosápia, as parras, formando maciços de verdura tenra, monopolizam os olhares. Dos  proprietários a farejar indícios de maleitas, afeitos às partidas de mau gosto de geadas e a outros atentados. Vigilância sem tréguas. Prontidão no ataque a pragas malfazejas (passe a redundância). Olhares de simples passantes, filiados no partido da beleza vegetal. De apreciadores dos vinhos do Douro, finos ou de mesa, que se contentaram, durante anos, com o prazer do seu sabor, menosprezando a paisagem milagreira de onde provieram.

    Sossega, rio. Tu, caudal encorpado, obediente ao destino ditado pelo progresso, és e serás, sempre, o nome simbólico da região. Um emblema. Um estandarte. Um cartão de visita. Tu e as vinhas não são antagonistas. Complementam-se. Cada um no seu papel, empenhados em boas performances.
    Sobre ti, Doiro (para Torga e João de Araújo Correia), rio e região, escreveu o primeiro em PORTUGAL: "[...] e é, na pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo".    E esta, hein?  




M. Hercília Agarez
Vila Real, 20 de Junho                                      

Pontes da Régua-1169

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-526

Foto:josé alfredo almeida

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Diz




Se eu desaparecer hoje 
E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado
a escrever desde a ponta da língua à légua mais distante
da minha vida, 
diz que compreendi.
Diz que sei que nada está onde é certo estar 
Que o amor súbito é a escada para o entendimento
e come os espelhos
Diz que fui ar azul sobre campos de secura 
Estrada recta ao infinito, entre oliveiras, 
um acidente ao longe 
Que provei toda a sede quando engoli os homens 
Que queimei alegremente no ácido das palavras
Que tombei em ricochete para que me vissem 
E que quando me viram me ergui animal
Diz que me viste nua, sempre 
Que corri por hospícios de olhos fechados 
e a boca às avessas 
Que vivi mais ao alto do que em mundo plano
e fui honesta na minha rente loucura
Diz que nunca esqueci a subida a um plátano 
Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu no de ninguém 
Que fui sim, o halo frio que enchi com esta pena pela
minha ausência 
E que tudo o que disse foi com silêncio
Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,
embora não queiras
Que o teu corpo me serviu de andar nas pernas asmáticas 
Que te agradeço ter-te oferecido lírios
Que me reduziste o nojo da espécie 
Diz que eu, fui eu
Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:
- quanto em mim fui que não vivi 
quanto em ti é que fui eu?


Mas não te preocupes, não desapareço hoje 
Quando me conheceste já eu não existia, 
e tu sabes 
que essas saudades que vais tendo,
são as minhas.

Cláudia R. Sampaio

Manhã azul

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-524

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-523

Foto:josé alfredo almeida

domingo, 17 de junho de 2018