sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Sou um rio

Foto:josé alfredo almeida




Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.



Álvaro de Campos

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Paisagem poesia

Foto:josé alfredo almeida 


Sentava-me numa relva de jardim à tua espera:
a frescura acesa e esperançosa no tempo que ainda faltava.
Nos meus lábios
uma citação anónima dava o mote para a ternura da tarde.
Quase um verso.
Escrevi na pele, rasguei bem fundo.
Se eu cravar a unha no sulco
e a dor perdurar para lá desta compreensão
quer dizer que ainda estou viva? Irá o meu coração
saltar do peito aberto à velocidade da luz?
Quase um fio infinito de sangue e pensamento e vida e amor.
Na escrita e no rosto, tu disseste. Mas eu ainda não sabia de ti.
Na escrita e no coração, eu disse. E tu soubeste de mim.
E é no rosto que exponho o meu coração perante o teu poema
enquanto o crepúsculo escrevia um livro inteiro nas bocas verdes.
Adília César

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Depois da ponte

Foto: josé alfredo almeida 





"Quer saber o que há depois da ponte?
Atravesse-a."




Li Azevedo

Serei árvore

Foto: josé alfredo almeida 



Morta... serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.


Enfeitei de folhas verdes 
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.


Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.



Cora Coralina

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Há sempre um começo

Foto: josé alfredo almeida



«O amanhã não existe no mesmo lugar»:
há sempre um começo antigo em cada despedida.



Jorge Pinho

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

O sol vinha à janela

Foto: josé alfredo almeida





ao início das tardes soalheiras
levavas-me pela mão
fazíamos o caminho lado a lado
as sombras uma teia
tecendo-nos como os dias
em crescendo
ensinaste-me a arejar uma casa
o sol vinha à janela
rindo a toda a extensão da pele
e as plantas
que me dizias para regar
talvez continuem
a crescer na água dos gestos.


Helder Magalhães

domingo, 26 de janeiro de 2020

Nós

Foto: josé alfredo almeida




(...)
" é um lugar ligeiramente
à esquerda para que da inclinação da flor
sobrasse uma margem de inquietude sobre essa vida que não existe"




Sandra Costa 

Não penses, olha!

Foto:josé alfredo almeida



Não fosse isso
e era menos
nao fosse tanto
e era quase


Paulo Leminski

sábado, 25 de janeiro de 2020

Nada sabemos

Foto:josé alfredo almeida



Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.




Fernando Pessoa

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Devias estar aqui

Foto:josé alfredo almeida





Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um.


Eu vi a terra pura no teu rosto,
só no teu rosto e em mais nenhum…


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Mais nada

Foto:josé alfredo almeida


(...)

É pouco? Há também esta luz
que não existe, que já passou, que não volta mais.


Luís Filipe Parrado

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

A não ser adeus

Foto:josé alfredo almeida




quando sobe a luz do dia, e o amor fica deserto, que dizer-vos
do amor______ a não ser adeus.




Maria Gabriela Llansol

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Mudanças

Foto:josé alfredo almeida



O que muda na mudança,
se tudo em volta é uma dança
no trajeto da esperança,
junto ao que nunca se alcança?



Carlos Drummond de Andrade

Não estás aqui





Não estás aqui. Nem na minha vida, nem no meu sonho. Não estás nem no
que eu amo nem no que eu quero. E nem no que eu preciso. E nem no que
eu odeio. Não estás, sequer, entre as coisas que me são indiferentes.
Simplesmente não estás. Nem és. Nem poderás ser alguma vez. Sendo
assim, és apenas o que não és. Logo, não existes, não contas, não
respiras, não vives.E não serás recordação. Não haverá memória de ti,
apenas memória da tua não presença, de uma luz que nunca se acendeu,
de um rio que não tem água, de um recado que não tem palavras, de um
filme que não tem imagens. E ainda assim falo de ti. Ainda assim, faço
de conta que existes, fantasma do meu texto, espírito do nada que me
escreves quando escrevo. Inexistência do que é. Certeza de tudo o que
é incerto. Sentimento do que não pode ser sentido.



Joaquim Pessoa

domingo, 19 de janeiro de 2020

Pode ser só uma palavra







"Sabemos que alguém vai fazer parte da nossa vida
 para sempre quando
nos ensina alguma coisa 
que não vamos saber esquecer.
Pode ser só uma
palavra."



Disseste baixinho:
" Já me achaste...
Fica..."



Maura Sarmento Fernandes

Leva o teu olhar

Foto:josé alfredo almeida



Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar



Chico Buarque

sábado, 18 de janeiro de 2020

Ainda o azul

Foto:josé alfredo almeida




Este céu passará e então 
teu riso descerá dos montes pelos rios 
até desaguar no nosso coração


Ruy Belo

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Ton sur Ton

Foto: josé alfredo almeida



 
       Apenas dois elementos da paisagem. O natural, rio argiloso e ardiloso, em mudança de andamento. Uma sinfonia de castanho baço e tristonho. O edificado. Dégradé de tons terra em base de ponte, cromaticamente em comunhão com as águas castigadas. A mutabilidade leviana de uma corrente que gosta de surpreender, pelo belo e pelo feio, serve de fundação a uma obra de engenharia onde se associaram a arte e o engenho, a concepção e a execução, a mente e as mãos. Do lápis e do papel ao pico e ao maço. 

     Assim exposta, neste enquadramento, tem honras de vistas paradas, fixas. E vale a pena desviar o olhar para este alicerce da ponte ferroviária. E apreciar a perfeição dos alinhamentos criteriosos e minuciosos das peças de um xadrez em granito, digno e imorredouro. Um profissionalismo de execução dos pés à cabeça. 

   Rio e ponte. São cúmplices. Estão cúmplices. Convivem há muitos anos, nenhum com ilusões de mudar de residência.

   Pontes da Régua. A cada uma a sua história, as suas datas, os seus intervenientes, os seus utentes. Para mudar de margem. Do pedonal a passo de passeio, ao acelerar ao ritmo das urgências e da adrenalina. Do ferro à alvenaria, ao betão. Do nobre ao plebeu. Do artístico ao utilitário. Do romântico ao vanguardista. Do engenho e arte ao desafio tecnológico. Escreveu Amiel: “Mil coisas avançam, novecentos e noventa e nove recuam: é isso o progresso”.

M. Hercília Agarez
Vila Real, 06 de Janeiro de 2020

Um rio sem margem-4

Foto: josé alfredo almeida

domingo, 5 de janeiro de 2020

Ilusão de óptica?

Foto:josé alfredo almeida




Quem vê o céu na água, vê peixes sobre as árvores.

(máxima chinesa)

   

  Pois é! Isto é mesmo na Régua! Ainda hesitei no palpite porque só lhe conheço um rio. Afinal são dois, “dois caminhos paralelos”, de igual catadura sombria e amuada, envergonhados das vestes de viúvas em alívio de luto.

  Por solidariedade, o céu envergou a sua toilette de antipático, de birra, e, numa espécie de mimetismo, acizentaram-se montes arrepiados de frio.

 Árvores adultas e robustas, enterradas pela enxurrada até à cintura, separam águas vizinhas, não vão elas, ciumentas, travar-se de razões, borrando, ainda mais, a pintura… De cabeças levantadas e conformadas, gozam o espectáculo de palanque. E sentem-se vedetas, apesar de toucadas de verde murcho e desbotado. Sempre é um cibo de cor… E cochicham, maldosamente, escondendo risos, ao verem os olhos em bico e o ar de basbaques de quantos, em tempos de sempre objectiva no bolso, as retratam em pleno e demorado banho, à espera de um sol que lhes sirva de toalha, quando as suas partes baixas sairem do castigo.

  A mim, o que me valeu para localizar sem equívoco a cena no mapa fluvial do país, foi aquele vulto negro e esguio como cipreste, alcandorado em alturas onde não há cheia que chegue. “Quem tem capa, sempre escapa”, não é, mister Sandeman?


M. Hercília Agarez
Vila Real, 05 de Janeiro de 2020

Um rio sem margem-3

Foto: josé alfredo almeida

sábado, 4 de janeiro de 2020

Douro pintado!

Foto:josé alfredo almeida



    As argilas dos solos que ficaram saturados depois das chuvas de há duas semanas escorreram dos afluentes para o rio Douro, explicou Adriano Bordalo e Sá ao Jornal de Notícias.

     Segundo o hidrobiólogo do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, “é ótimo” o facto de “todo esse barro” ter ido “parar ao rio”.

   O fenómeno, que é natural, assegura o especialista, acabará por servir de fertilizante do rio e do mar, “enriquecendo a águas e as algas, quese vão desenvolver na primavera graças a um adubo natural”. 

     “A sardinha vai comer essas algas e no São João vamos ter sardinha muito boa. É o ecossistema a funcionar”, acrescentou em declarações aojornal.

    A cor do rio tem despertado a curiosidade das pessoas que por lá passam e nas redes sociais a partilha de fotos vai-se multiplicando."


in Jornal de Notícias

Ver para crer...

Foto: josé alfredo almeida




pata ante pata
até ao escorrega:
ver para crer...


M. Hercília Agarez

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O poiso possível

Foto:josé alfredo almeida



há sempre um poiso seguro
para descanso de cansaços:
aventura
(inédito)



     Como não tenho família e sou gaivota de poucos amigos, ninguém estranhará a minha ausência em consoadas, natais e réveillons.
    Os meus companheiros de espécie, fartos de conhecer céus, rios e mares, em alturas e baixuras neste norte onde o frio se sente em casa, andam, há tempos, a moer-me a paciência. Que parece impossível não constar do meu currículo viageiro a arribação em margens durienses. Que não sei o que perco. Que o rio tem histórias de aterrar (antes) e de encantar (depois). E, pelos vistos, de vez em quando quer botar figura ao mostrar uma virilidade devastadora, feita de roncos ameaçadores, apreciando, depois, cinicamente, estragos inundadores e prejuízos cíclicos.

    Resolvi meter férias de águas salgadas e vim adocicar o bico por estas bandas aquosas. E fiz a viagem empanturrado de expectativas, sem nunca descrer de louvores entoados quase religiosamente por habitués. Desta não estava eu à espera, perante promessas doutorais de sol e de sossego. Nunca fiando…E olhem o que me saiu na rifa! Nem azul de céu, nem esverdeado de águas, nem claridade prazenteira. Pareço, neste poiso hospitaleiro, uma ilha branca rodeada de cinzento, encimada de cinzento, pousada em cinzento. Lá dizia a minha mãezinha: “Boa festa faz quem em sua casa fica em paz…” 

M. Hercília Agarez
Vila Real, 03 de Janeiro de 2020