sábado, 31 de agosto de 2019

As pontes da Régua



No tempo em que eu vivi na Régua, a ponte (hoje) pedonal, estava intransitável.
Foi pela ponte que eu cheguei à Régua.
Lembro a visão das pontes, a descoberto pelo nevoeiro a dissipar-se, libertando-se docemente dos braços do rio, revelando toda a beleza daquele vale.
Como um presente diário, oferecido pela nature
za.
Por vezes ia com familiares meus até além- Douro em passeio a pé, na minha memória o dia era azul, a meio da ponte eu acenava com um lenço branco para longe, onde sabia
que a minha Mãe estava à janela. Um aceno de ternura, sempre correspondido.
Mais à frente, num pequeno lugarejo, havia bancas com biscoitos da Teixeira e cavacas, tudo se conjugava para uma tarde feliz, como só as crianças sabem ter.
À noite sobre as pontes, retratada no rio via a lua toda em prata, envolta em silêncios.
Assim adormeci tantas vezes, de janelas abertas,
o luar encostado ao meu sorriso.
Em Setembro, era uma agitação a ida a Lamego à festa da Sra. dos Remédios. As roupas apropriadas, os chapéus, a merenda e um bolo. Também os agasalhos, para o regresso tardio.
Apanhávamos a camioneta num largo arborizado perto da estação, onde abundavam vendedores de fruta. Da janela via o rio, verde
, largo, companheiro dos meus dias.
Pela ponte, a camioneta cheia, tudo a falar ao mesmo tempo, era um dia de festa e de fé, para muita gente.
No regresso, eu espreitava o rio que não via mas adivinhava na escuridão,
vozes, birras de crianças cansadas
e um colo onde eu adormecia.
Esperava pelos ciclistas com alguma impaciência no início da ponte, de os ver surgir nas suas cores de arco-íris, por fim o carro vassoura.
As pontes que eram acordadas, ao som de gritos e preces. De vestidos de mulheres a esvoaçarem ao vento, sob o meu olhar dorido, ao longe da janela do meu quarto.
As pontes da Régua,
cenário da minha infância, caminho de ida e volta, destino.

Ana de Melo

domingo, 25 de agosto de 2019

Tanto olhar

Foto: josé alfredo almeida





As gavoitas. Vão e vêm.Entram
pela pupila.
devagar, também os barcos entram.
Por fim, o mar
Não tardará a fagida da alma
de tanto olhar, tanto
olhar.


Eugénio de Andrade

sábado, 24 de agosto de 2019

Aqui posso descansar

Foto:josé alfredo almeida





grande e vagaroso vento
da biblioteca do mar.
Aqui posso descansar.




Tomas Tranströmer

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

A vida é uma festa

Foto:josé alfredo almeida




após a festa da aldeia
ficou ainda um crepe
a lua-cheia




Rogério Martins

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O meu Moledo-170

Foto:josé alfredo almeida




"As Caldas do Moledo são uma riqueza local, regional e nacional. Conhecê-las defendê-las é obrigação  de nós todos"




João de Araújo Correia

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

O meu Moledo-169

Foto:josé alfredo almeida




"Enquanto não houver parque municipal, gozemos e amemos o do Moledo, que também é nosso com o principal adorno das nossas ricas termas. Não se diga, por vergonha, que não temos árvores capaz de abençoar e amparar o viajante cansado.
O parque do Moledo é o nosso único parque. Ama-se e defenda-se, enquanto não tivermos outro e depois de termos outro. Quanto mais arvoredo, mais beleza e mais saúde..."



João de Araújo Correia

terça-feira, 20 de agosto de 2019

O meu Moledo-168

Foto:josé alfredo almeida




"Deve ter acabado de chover nesta terra adormecida na borda d’água deste rio de mau navegar. Da terra molhada levantam-se aromas de vida e dos plátanos majestosos caiem gotas cristalinas que me entram pelos olhos adentro. É tempo de espreguiçar a alma... Assim falou o misterioso viajante, segundos antes de adormecer no único banco do Moledo aonde o Sol da tarde ainda conseguia chegar.

Como ali tinha ido parar, ou porquê, não se sabe muito bem, mas isso era algo que o não importava... pensou, imediatamente antes de ouvir o sussurro das águas apressadas que o transportavam ao barulhento e majestoso Salão de Festas do Hotel Gomes.

(...)

Enigmaticamente por entre eminentes juristas em fim de carreira e bonacheirões comerciantes, deambulava o nosso viajante em busca de um lugar onde pudesse escrever um tranquilo postal. E, descobriu bem perto um harmonioso jardim de hortênsias floridas e esplendorosa begónias, sobranceiro ao rio. Faltava um tinteiro que um criado de invejável delicadeza rapidamente pousou a seu lado.

Finalmente escreveu: 

“Caldas do Moledo, 28 de Julho de 1925- Minha muito querida. Cheguei ontem à noite e apesar do isolamento e da falta do bulício é um encanto onde se passa dias admiráveis. O vale enorme que tem por sopé o Rio Douro, constituído por uma escadaria de parreiras e enorme vegetação. Não calculas querida amiga que ao admirar estas belezas só tenho em pensamento o não poder transformar em realidade o sonho que há tantos anos me traz absorvido”.


José Alfredo Almeida

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

O último verão






Um dia nossos filhos verão aquelas fotografias e perguntarão:
quem são aquelas pessoas?
diremos que eram nossos amigos
E isso vai doer tanto...



Vinicius de Moraes

domingo, 18 de agosto de 2019

Que rica cabeleira!






    Como escreveu António Gedeão no seu poema “Mãezinha”, também a mãe deste cachopo foi uma daquelas senhoras que só havia dantes. Entende-se o que o poeta pretendia dizer. Senhora e mulher não era, não é, de todo, a mesma coisa. Naquela altura formavam-se em senhoras, com ou sem pós-graduação, em colégios de renome, meninas cujo currículo incluía rendas e bordados, pudins e charlotes, castanhas de ovos e ovos em fio, vários tipos de pontos de açúcar e outras minudências gastronómicas, incompatíveis com a estupidez de mãos de Marias e de Rosas. E também tinham uma cadeira chamada puericultura, outra, mais complexa, de protocolo e regras de etiqueta, ainda outra de religião e de comportamento cívico e moral. E outras competências femininas, carimbos de passaportes a darem entrada no sagrado sacramento do matrimónio, de validade a expirar mal a morte o dissolvesse. A recitação de poemas românticos, em português ou francês, com pronúncia do Norte, assim como o cerimonioso e titubeante dedilhar de teclas pianísticas (de onde haveriam de escapar uns pífios Strausses e Chopins) eram outras das aprendizagens avaliadas por formadoras, antes de concederem às candidatas o grau académico de Fadas do Lar.  

    Era uma senhora, a mãe deste menino. Alternava os seus passatempos domésticos com a metódica e escrupulosamente cronológica organização do álbum de fotografias do crianço, tiradas pelo baboso marido em momentos caseiros e desenjoados.  A legendagem competia à progenitora, o que a ajudava a não esquecer as adquiridas noções de ortografia e caligrafia. No verso desta imagem, após a data e o local, pode ler-se: “o Francisquinho e o seu barquinho”. Nós teríamos acrescentado: barquinho de areias salgadas, penteadinho à prova de nortadas.

    Que bela cabeleira! Forte, ondulada, de um crespo domável, esperando a mão adolescente do dono, de olho nas meninas, de pente em riste, em frente ao espelho, a aconselhar-lhe a mais adequada moldura para o rosto de finos traços e fatais olhos e a alertá-lo para a sua puberdade sem pêlos…

    Quem haveria de dizer que aquela fartura capilar redundaria em calvície precoce, a pedir peruca na zona devastada, a condizer com guedelhas meladas nas têmporas e na nuca? Como se estava longe dos transplantes, ficou assim mesmo, o Dr. Francisco Bacelar, com o beneplácito da esposa, Senhora Dona Hermengarda, cuja fidelidade e dedicação marital se não deixariam vencer por um acidente a que não terão escapado reis Luíses de França e outras cabeças coroadas (mas pouco fartas em cabelo), obrigando-os   a encafuá-las em mofo de cabeleiras fartas, feias e farfalhudas.

    Têm esta particularidade as fotografias do tempo em que não envelheciam em computadores e penes. São memórias perduráveis, encantadoras, que ajudam a visualizar tempos despreocupados, em que se remira o passado em nós, na inocência e na rabitesa, nas tropelias e atentados a joelhos e cabeças, nas poses infantis normais ou carnavalescas.

    Não há bom escritor que se esqueça da sua infância, mesmo se camuflada em personagem de ficção.  Ela é a menina dos olhos dos poetas, esses magos da palavra, capazes de nos enternecer com dizeres tão simples como este:


Pedagogia


Brinca enquanto souberes!

Tudo o que é bom e belo

Se desaprende…

A vida compra e vende

A perdição.

Alheado e feliz,

Brinca no mundo da imaginação,

Que nenhum outro mundo contradiz!

………………………………………………………..

Miguel Torga




M. Hercília Agarez
Vila Real, 18 de Agosto

domingo, 11 de agosto de 2019

Ermo

Foto: josé alfredo almeida






Também as telhas nasceram
para vida em companhia:
dura, a solidão.
  

M. Hercília Agarez

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

O rosto de um barco

Foto: josé alfredo almeida




"O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê."



Platão

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Beleza simples

Foto:josé alfredo almeida



Lilás juvenil
em verde adulto:
a beleza de ser simples


M. Hercília Agarez

sábado, 3 de agosto de 2019

Nas nuvens




Para ti, meu amor, é cada sonho

de todas as palavras que escrever

cada imagem de luz e de futuro,

cada dia dos dias que viver.
……………………………………………  
Carlos de Oliveira



    Estão nas nuvens. Depressa deram entrada nesse fofo mundo, galgando degraus do tamanho da sua pressa. La main dans la main.
     Leves de corpo, pesados de emoções. Aterraram em chão plano, seguro, como quem ganha corrida de obstáculos. Desentrelaçadas, as mãos vivem outros encontros. Umas, mais espontâneas e virgens, para anéis e afagos feitas, ancoram-se em porto seguro e tanto sorriem como boca e olhos. As outras, aguerridas, como quem salva criança de afogamento, travam um salto que de mortal só se fosse de amores.

     Ela, com uma jovialidade de soquetes, saia rodada e cabelo à garçone, parece ter asas nos pés. Já voou muito, na vida adolescente, em alturas de Ícaro, ao encontro de abstrações enfiadas em cordão de ideais, de sonhos romanticamente engendrados. Visualizou príncipes, viveu-se princesa. Tentou adivinhar o sabor de beijos, o calor de abraços, a musicalidade de frases repartidas.  Até que tudo passou a ser visível e palpável, real e concreto.
  Ele, inseguro, incrédulo da reciprocidade de afectos obsessivos, aguardou, resignada e esperançosamente, este momento a dois vivido, a dois degustado, a permitir-lhes gritar palavras, rumorejar promessas, ciciar segredos.
    As nuvens, essas, sentem-se honradas por serem guarida discreta de amores jovens, elas que sempre se ufanaram da sua pluralidade semântica.  Neste caso, o casalinho está mesmo nelas e nelas andou enquanto se eternizavam os dias da espera.

M. Hercília Agarez
Vila Real, 03 de Agosto de 2019   

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Dar gosto

Foto: josé alfredo almeida





Saudável a cor:
venha são o sol de Agosto
para lhes dar gosto.


M. Hercília Agarez