Foto: Arquivo dos BV da Régua |
Inesperadamente e quase por desfastio, fui visitar há dias o valioso Museu dos Bombeiros da Régua. Aconteceu no último Agosto e a convite do Dr. José Alfredo Almeida, digno Presidente daquela Corporação. A hora não era muito propícia e a tarde até ia incendiada de calor.
Mas, aceitei o convite e dei por bem empregues os poucos minutos dedicados ao Museu. Se o vi pela rama, mesmo num relance de olhos, também é verdade que me deliciei com tudo quanto pude ver naquele pequeno mas admirável Museu, repositório de tudo quanto se relaciona, ou relacionou, com qualquer corporação de Bombeiros no tocante à sua actividade, seu dinamismo, seu voluntariado.
Naquele amplo salão, iluminado pela luz de umas vidraças soalheiras, não se pode dizer que o Museu seja rico em demasia. Mas é um Museu a seu modo, rescendente de memórias e evocativas imagens. Não é rico, mas está ali um bom remedeio de curiosidades e velharias, aquelas que no correr dos anos tiveram a sua identidade e a sua prestimosa serventia.
Diante de tais velharias fiquei contemplativo. Contemplei, por exemplo, um carro de mão que seria, nos velhos tempos, um carro de pronto-socorro. Agora é uma peça antiga, um carro anacrónico, de amplo rodado e com dois varais que serão o prolongamento da força braçal de alguns homens, nos caminhos da prontidão. Não são varais de macho a galope, nem sequer à medida de burro tropiqueiro.
O carro tem em cima um depósito de cobre um tanto amolgado e a sua capacidade será de 200 litros de água, se tanto, água que daria para apagar um lume brando e macio e nunca para extinguir um fogo de alterosas labaredas. Mas é uma bela peça carregada de poesia e originalidade no decurso dos anos e agora ali está, muito quieta, ao rés de todo o inventário museológico.
E a sineta que veio de Canelas quando Canelas foi sede de concelho e que ali ficou à guarda e aos cuidados dos bombeiros? Dei-lhe um pequeno toque de badalo, alarme fingido, e a sineta soltou um eco dos tempos idos, ainda assim cheiinho de bronze e sonoridades.
Passam-me então pela retina vários retratos de gente notável. Lá está o retrato de meu bisavô José Braz Fernandes, bisavô pelo sangue materno e que, ao tempo, foi o primeiro Presidente dos nossos bombeiros.
A fotografia retrata-o como figura já atempada na idade, com barbas tão respeitáveis como patriarcais e com o olhar fixo em alguma distância. É um retrato igual ao original que sempre vi, ano após ano, no recanto mais intimista da minha casa paterna e avoenga.
A minha tia-avó Cândida Braz Amaral também foi benemérita dos bombeiros e também avulta na galeria do Museu, em retrato de meio perfil. Foi uma tia bastante rica, sem filhos, que legou à família o valioso e imponente jazigo mandado construir no cemitério do Peso.
Aproveitei e pedi-lhe licença para, na hora do meu passamento, eu não entrar num gavetão do jazigo, mas descer à mesma campa rasa de meus pais. Já em tempos o deixei escrito nos dois últimos versos do poema a que dei o título “ Quando o além me chamar” : Dizem:
E assim dormir no teu regaço
Para sempre, boa terra, Minha Mãe.
E o retrato do Comandante Carlos Cardoso? Esse veio ao meu encontro como se quisesse dar-me um abraço. Fomos contemporâneos, companheiros e até confidentes de muitas realidades, irmanados na mesma empresa – Hospital -, a desempenhar funções paralelas. Eu, no tratamento de doentes, internados ou não, ele, a prestar contas como chefe da secretaria e a comandar também, com muito aprumo e dignidade, a Corporação dos Bombeiros da Régua.
Digamos que por esse tempo, em caso de catástrofe, o quartel dos bombeiros não mandava tocar os sinos a rebate. Já dispunha de uma moderna sirene que, à conta de um simples botão, mandava por aí fora um som estridente de muitos decibéis. Nos primeiros instantes tudo começava com um arranque poderoso, rombudo até, e logo se aguçava fino e estridente nas pontas de um dramático arrepio, a pontear no céu as linhas de uma tragédia.
Muitas vezes surpreendi o Comandante Carlos Cardoso alvoroçado pelo toque da sirene. Bastava que eu estivesse mais livre de obrigações e ele ocupado no enquadramento da sua secretaria, para que tudo em volta se agitasse num repente e no impulso de uma mola não pasmada. E logo o Comandante Carlos Cardoso corporizava a prontidão. As realidades e o sobressalto das certezas sobrepunham-se aos desígnios de qualquer romantismo.
E deixo para trás a profusão de outras antigualhas: bombas motorizadas, acessórios de fardamentos, lanternas, macas, medalhas, documentos, mercês honoríficas.
À saída fiz uma vénia a S. Marçal, patrono dos bombeiros. A imagem do santo já tem algumas quebraduras e já tem algumas desfigurações do tempo. S. Marçal costumava ir na procissão do Socorro, em cima de um andor, como quem vai nas andanças de um púlpito.
Mas, assim velhinho e marcado pelas desfigurações, nem pode mandar-nos de lá uns acenos de santidade.
Peso da Régua, 8 de Setembro de 2013
Manuel Braz de Magalhães
Um grande excerto, ..
ResponderEliminardignidade- dedicação , coragem ...
Bela descrição. Pena é o museu não estar acessível ao público....
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