Nos dois primeiros dias de vindima não se ouvia, em toda a quinta, uma cantiga. Como se ouviria? Costuma-se dizer que ovelha que berra, bocado que perde… Só depois de embebido de suco até o queixo é que o mulherio cantava. Saía-lhe então da boca o cancioneiro do Douro em voz esganiçada:
Rio Doiro, rio Doiro,
Rio de tanto penedo,
Se não fosse o rio Doiro,
Não tomava amor tão cedo.
O meu amor é do Doiro,
Donde as águas correm bem,
Saiba-o eu e saiba-o ele,
Não no saiba mais ninguém.
De entre os homens que desciam do lagar para a vinha com o cesto vazio atravessado na troixa, respondia às vezes o mais cantador:
Rio Doiro, rio Doiro,
Em teu centro canta a cobra.
Quanto mais o mundo fala,
Mais o nosso amor dobra.
Casavam-se estas cantigas, asperamente entoadas, com a paisagem de horizonte estreito, o trabalho difícil na terra e no rio, o amor e o vinho violentos, a poesia de uma flor aberta entre rochas, debaixo de um céu seco…
Ao entardecer, despegavam da vinha as vindimadeiras. Iam dormir à aldeia. Mas, de passagem pelo quinteiro, liso e espaçoso, apetecia-lhes bailar.
-Vá, tio Ambrósio, pegue no harmónio.
É só um bocadinho...Que não queremos ficar atrás das outras.
As outras eram as serranas, mulheres de capucha e cesta de silvas, vindas da Gralheira e outros pontos altos para vindimar.. Mulheres que apenas conheciam a neve e o centeio, olhavam para as uvas com espanto dobrado de ano para ano. Àquela hora, nas outras quintas, animavam os terreiros com danças de roda anrigas.
-Vá, tio Ambrósio, toca a pegar no harmónico!
O tio Ambrósio, por desconcerto da natureza, era o tanoeiro pançudo. Escondia a barriga debaixo do harmóico e tocava, que parecia outro.
Entre as dançarinas, velhas e novas, quase todas feias, havia três raparigas demasiado mimosas para trabalhos rurais. Eram as Garcias, flores deslumbrantes, meigas esculturas, filhas de um pedreiro descoroçoado da arte por amor ao vinho. Descia à quinta, ao cair da tarde, para as guardar, mas esquecia-se...
Parecia que tinha ido beber. Com os olhos vítreos, prometia facadas a quem desonrasse as filhas... Henrique não as desonrovas, mas, em boa verdade, não as podia ver sem alvoroço da alma e do sangue. Eram três graças perfeitas, filhas do Olimpo, mais do que do pedreiro. E vindimavam...
João de Araújo Correia in "Casa Paterna"
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