sábado, 6 de junho de 2015

Brincos de cerejas

Foto: josé alfredo almeida



"Numa delicada manhã de Maio, cheia de tintas azuis muito frescas nos montes de Além-Douro, o doutor abalou de casa e refugiou-se numa das suas vinhas. Afogou-se no mar verde dos pântanos. Numa cerejeira, que se elevava das cepas à altura de dois homens, amaduravam já as primeiras cerejas. O Doutor viu-as e ficou muito contente. Pôs-se a contemplar os ramos agitados do vento primaveril e riu-se como as crianças quando vêem frutos vermelhos. Estimava do coração aquela cerejeira por ser temporã. Dava cerejas quando ainda se não falava nisso senão em portelo ou na Penajóia. E que lindos eram os primeiros frutos! Nos ramos tenros da árvore, sacudidos do vento, lembravam rubis em dedos trémulos de mulher friorenta. Na luz subtil da manhã de Maio, numa vinha, as cerejas bicais, pela frescura e pelo colorido, tanto reviam a carne feminina deliciosa, que o doutor suspirou, como saudoso de um céu que jamais conhecera. A esposa era o avesso da feminilidade.
O doutor, a passo lento de contemplativo, foi caminhando pela vinha adiante na direcção de um teso, donde provinham cantigas juvenis misturadas com vozes roucas de gargantas velhas. Eram as mulheres do enxofre. Ele dirigiu-se para lá, para as ver trabalhar. De repente, do sítio donde emanavam os sons álacres e os sons cansados, veio um silêncio curto, logo seguido de tumultuoso marulho de altercações mulheris. O doutor apurou o ouvido e pôde colher do ralho alguns palavrões coléricos: puta, coldre e calhamaço. Que haveria?" 

João de Araújo Correia in "Contos Bárbaros"

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