Ao Zé Alfredo, meu companheiro de tantos jogos
Não sei qual foi o instante preciso em que um
de nós, pela derradeira vez, afagou em desespero a rainha e lançou obliquamente
o rei até ao solo. Terão passado quase trinta anos sobre esse fechar das
gelosias da adolescência. A casa desamparada na memória, às escuras e à espera.
Esse momento em que cada um de nós partiu impante na sua armadura, cavalgando a
descoberta e a tomada do mundo (o cavalo sempre foi a minha peça predileta do
jogo de xadrez).
Não terá sido este jogo a ensinar-nos que
impante é também aquele “que soluça convulsivamente”. Talvez a lição tenha
provindo de outras latitudes. Talvez seja a vida, afinal, que no-lo ensine, mas
nós nos mantenhamos, por muito tempo, numa espécie de contentamento inconsciente,
como sussurraria um poeta. Recusando aprender.
Não éramos mais
do que duplos de Dom Quixote, lutando com adversários sem contornos nem feições
ou formas que pudéssemos ferir ou aniquilar. A seguir, tu partias para uma
cidade à beira do Mondego, traindo temporariamente o rio da tua infância, eu
limitava-me a acompanhá-lo curso abaixo até onde o destino me depositou como
peça inerte de um outro tabuleiro, o da existência.
Quase trinta
anos mais tarde! E é como se o peso das realidades que a nossa vida arrecadou,
durante esse intervalo, se tornasse insignificante ao relembrar o momento em
que, delicadamente (assim o éramos), um de nós, com toda a solenidade, terá
aceitado que a vitória lhe escapava. Lembro-me de teres dito um dia, não sei já
quando, porque nem pressinto se é verdade ou se não passa de ficção a
intrometer-se num texto, que era a mim que cabia a visão mais ampla, o olhar com
mais astúcia. Disseste-o como quem, a pretexto do xadrez, parecesse querer
antecipar os lances de êxito da vida. Concedi, a troco de pensar que havia
muito mais triunfo na tua labareda de futuro…
E avançávamos pelas casas do tabuleiro, que
queríamos coloridas pelo sol irradiado nas águas do nosso rio. Tantas majestosas
guerras em que a vida copiou o xadrez, tantos séculos se desenrolaram, e talvez
só agora entendamos que existir pode ser a preto e branco, como as casas
alternadas que um inventor imaginou. Como poderiam essas casas, de gelosias
também elas cerradas, inundar-se de outras cores? Como, mesmo aceitando que o
número de movimentos possíveis no xadrez supere o número de estrelas no
universo? Como, se mesmo assim, com tantos lances ao dispor da mão, haverá
sempre, ou quase sempre, um conquistador e um derrotado? Já não sei se dizemos
xadrez, se dizemos vida…
Acredito que na nossa biografia nos servimos
de todas as peças. Teremos sido peões muitas vezes, aceitando a submissão a um poder
superior. Confiámos nos bispos e na sua fé redentora, eles que se movem,
contraditoriamente, de modo diagonal e tão furtivo no tabuleiro. Construímos em
determinadas ocasiões torres alçadas ao céu, fortalezas que ninguém conseguia
desmontar e que soçobravam, de repente, sozinhas. Tivemos rainhas nas mãos, sem
reconhecer que nada é duradouro e que essa posse deve ser acariciada com fervor.
Encarnámos tantas vezes, mormente no desencanto, aquele rei que abdicou por não
aguentar sofrer. Incrível como a vida se assemelha, na sua tremenda realidade, à
guerra que se trava no tabuleiro…
Superávamos tardes inteiras debruçados sobre o
jogo, como se não houvesse amanhã. Era uma batalha num espaço cósmico, testemunhada
também pelos nossos amigos, que emudeciam em agonia. Uma contenda que nos fazia
pairar acima do tempo. Cada um de nós procurava o lance decisivo, a honra do
estertor inimigo, o olhar compassivo de quem se adivinha, dessa vez, o
vencedor.
Cada um de nós buscava a vida diante do risco
da derrota.
24 de dezembro de 2018
Jorge Pinho
Excelente texto e uma bela fotografia.
ResponderEliminarREVIVER ..MOMENTOS DA VIDA ??
ResponderEliminarE COM CERTEZA...MESMO..
PARA SEMPRE !!
E ESPECIAL ..!!!