terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O xadrez e a vida





      Ao Zé Alfredo, meu companheiro de tantos jogos
     


       Não sei qual foi o instante preciso em que um de nós, pela derradeira vez, afagou em desespero a rainha e lançou obliquamente o rei até ao solo. Terão passado quase trinta anos sobre esse fechar das gelosias da adolescência. A casa desamparada na memória, às escuras e à espera. Esse momento em que cada um de nós partiu impante na sua armadura, cavalgando a descoberta e a tomada do mundo (o cavalo sempre foi a minha peça predileta do jogo de xadrez).
       Não terá sido este jogo a ensinar-nos que impante é também aquele “que soluça convulsivamente”. Talvez a lição tenha provindo de outras latitudes. Talvez seja a vida, afinal, que no-lo ensine, mas nós nos mantenhamos, por muito tempo, numa espécie de contentamento inconsciente, como sussurraria um poeta. Recusando aprender.
       Não éramos mais do que duplos de Dom Quixote, lutando com adversários sem contornos nem feições ou formas que pudéssemos ferir ou aniquilar. A seguir, tu partias para uma cidade à beira do Mondego, traindo temporariamente o rio da tua infância, eu limitava-me a acompanhá-lo curso abaixo até onde o destino me depositou como peça inerte de um outro tabuleiro, o da existência.
       Quase trinta anos mais tarde! E é como se o peso das realidades que a nossa vida arrecadou, durante esse intervalo, se tornasse insignificante ao relembrar o momento em que, delicadamente (assim o éramos), um de nós, com toda a solenidade, terá aceitado que a vitória lhe escapava. Lembro-me de teres dito um dia, não sei já quando, porque nem pressinto se é verdade ou se não passa de ficção a intrometer-se num texto, que era a mim que cabia a visão mais ampla, o olhar com mais astúcia. Disseste-o como quem, a pretexto do xadrez, parecesse querer antecipar os lances de êxito da vida. Concedi, a troco de pensar que havia muito mais triunfo na tua labareda de futuro…
       E avançávamos pelas casas do tabuleiro, que queríamos coloridas pelo sol irradiado nas águas do nosso rio. Tantas majestosas guerras em que a vida copiou o xadrez, tantos séculos se desenrolaram, e talvez só agora entendamos que existir pode ser a preto e branco, como as casas alternadas que um inventor imaginou. Como poderiam essas casas, de gelosias também elas cerradas, inundar-se de outras cores? Como, mesmo aceitando que o número de movimentos possíveis no xadrez supere o número de estrelas no universo? Como, se mesmo assim, com tantos lances ao dispor da mão, haverá sempre, ou quase sempre, um conquistador e um derrotado? Já não sei se dizemos xadrez, se dizemos vida…
       Acredito que na nossa biografia nos servimos de todas as peças. Teremos sido peões muitas vezes, aceitando a submissão a um poder superior. Confiámos nos bispos e na sua fé redentora, eles que se movem, contraditoriamente, de modo diagonal e tão furtivo no tabuleiro. Construímos em determinadas ocasiões torres alçadas ao céu, fortalezas que ninguém conseguia desmontar e que soçobravam, de repente, sozinhas. Tivemos rainhas nas mãos, sem reconhecer que nada é duradouro e que essa posse deve ser acariciada com fervor. Encarnámos tantas vezes, mormente no desencanto, aquele rei que abdicou por não aguentar sofrer. Incrível como a vida se assemelha, na sua tremenda realidade, à guerra que se trava no tabuleiro…
       Superávamos tardes inteiras debruçados sobre o jogo, como se não houvesse amanhã. Era uma batalha num espaço cósmico, testemunhada também pelos nossos amigos, que emudeciam em agonia. Uma contenda que nos fazia pairar acima do tempo. Cada um de nós procurava o lance decisivo, a honra do estertor inimigo, o olhar compassivo de quem se adivinha, dessa vez, o vencedor.
       Cada um de nós buscava a vida diante do risco da derrota.


24 de dezembro de 2018 
Jorge Pinho

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