terça-feira, 11 de outubro de 2016

Falo-te dessa Coimbra maluca que foi nossa

Camilo de Araújo Correia



Falo-te dessa Coimbra maluca que foi a nossa, povoada de mitos e ritos, como se de o séc. XIX fosse, com ressonâncias de uma herança quase heróica pelas suas lutas e dizeres que atirávamos à rua como se pedras ou flores fossem, acordando um romantismo dessa última cidade que o teve até ao nosso tempo. Que nos moldava o destino e nos dava os sinais de amigos e inimigos que se cruzavam. Havia por lá uma velha República de estudantes, a que chamavam (e chamam) 'Palácio da Loucura'. Não era muito rica a mesa que o Tossan envocava na Ceia Louca que por lá pintou, onde além dos alimentos se comiam palavras e bebiam ideias que nos iam pertencendo e que, por vezes, lançávamos à rua como se fossemos ricos e perdulários. Muitas se ganharam e muitas se perderam. Transportavas um pesado nome, que teu pai te impôs e o mano João ajudava a transportar. Nessa casa se cozinhava a alegria das coisas na ansiedade do saber e conquistar o melhor dos mundos para todos quantos caminham (ou caminhavam) à superfície da Terra, na base de valores de amizade bem temperada no penhor da honradez - foram valores que nos acompanharam sempre, fosse qual fosse o caminho que escolhêssemos. Casa de loucura numa cidade maluca, Coimbra tua e nossa que hoje recordamos com alguma sede de futuro e uma enorme saudade. Lembras-te, Camilo, quando um dia o Teixeira de Pascoaes veio a Coimbra visitar a sua estudantada e tomar um banho dessa enorme saudade? NovJardim da Sereia falou e disse que o Mondego fraternalmente se unia ao Jordão e que lá cima, no Penedo, é porque estávamos em Coimbra, se podia celebrar uma qualquer Santa Maria da saudade. Depois, ele, o Pascoaes, quis correr a Alta sozinho, porque queria encontrar o seu fantasma, queria medir-se consigo mesmo, queria medir-se com tudo o que podia ter sido e não foi - o que nos acontece a todos. Hoje percorro-a com a mesma intenção, procurando por igual o fantasma de todos vós que me deixaram já. Por isso recordo os meus Amigos como se estivesse à chuva, e os caminhos que ensinámos uns aos outros, continuando a caminhar o meu. Espero que me siga o vento, que a seu tempo foi vida e coisa de todos e vai sendo de ninguém. Eu sei que, tal como dizia, Vitorino Nemésio, o Mondego deu à Malta ou choupo por coração, mas gostava que estas palavras atravessassem esse Douro generoso como o vinho das longas festas e esse outro Douro de um imaginário que hoje é fronteira de vivos e mortos.

Manuel Louzã Henriques

2 comentários:

  1. "Espero que me siga o vento, que a seu tempo foi vida e coisa
    de todos e vai sendo de ninguém.".
    Tudo, nestas recordações é poesia. Bem haja por existir.

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  2. ..Uma ternura ...completa !!

    UM POEMA ... À VIDA..!!

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