Abre-se a cortina a inaugurar o anual o palco das vindimas do Douro.
Na terra sagrada, tudo era muito semelhante e, aos nossos olhos, quase
nem venerávamos a beleza do enquadramento, hoje com título de Património
Mundial. Homens, mulheres e crianças teatralizavam nos socalcos inundados por milhões
de verdes entrelaçados e salpicados com as cores da nova estação. As mulheres
vestiam saias compridas rodadas com vários padrões. Por cima um avental
colorido, alguns com acabamentos folheados e um lenço na cabeça, amarrado na
nuca a sublinhar uma identidade.
Eu era muito pequena, tão pequena que esgueirava, sem obstáculo, sob
as videiras. Na mão esquerda segurava um pequeno balde de praia colhendo, do
chão, os pequenos bagos que as mulheres deixavam escapulir das mãos, enquanto as
tesouras, sem dó, decepavam os cachos que sobreviveram aquele Verão.
Era um balde amarelo de praia ilustrado com desenhos, em relevo, de
meninos a brincar. Durante muitos anos, o baldinho fez parte do quotidiano dos
meus brinquedos. Não sei o destino que levou mas, sei que até hoje não vi um
balde tão belo quanto aquele amarelo que me acompanhou, também, na apanha da
azeitona nos períodos de Inverno.
A vindima trazia aquele aroma açucarado pela natural maturação da uva.
Já apresentam podridão mas, são esses pormenores que nos levam à repetição: “Cheira
a vindima!”
Sonhava em crescer, deixar de mergulhar a cabeça nas buracas das videiras
e esgueirar ao alcance dos belos cachos de uvas, encher o pequeno balde e
saborear os seus bagos a explodir de sumo em extrema doçura. Mas, a minha
pequenez obrigava-me a trepar pelas videiras, empoleirar-me para degustar o
fruto.
Eis que se soltavam canções regionais da boca de quem mantinha cara
alegre da nova tarefa ofertada por gentes que mantinham activos o lavor dos
prédios rústicos durienses. Os homens traziam à cabeça um saco de serapilheira
e sobre ele uma trouxa a servir de
ombreira rígida aos pesados e suculentos cestos feitos de fitas de castanho. Com
um trago de vinho à mistura, subiam e desciam lentamente as encostas íngremes e
exíguas em direcção ao lagar.
No final mergulhavam naqueles lagares, a transbordar uvas, amparados
pelos braços entrelaçados ombro a ombro. E gemiam, lentamente, o canto e o
assobio ritmado sovando a marcha de uma partitura.
O meu baldinho amarelo? Já o lavei e devolvi-o à tarefa de brinquedo.
A noite estremece quando uma cortina de bolhas de sumo de uvas assola
a superfície do lagar. Desligam a luz, fecham a porta do lagar. Chegou a hora
de descansar.
Maria de Lurdes Pereira Gomes
15-10-2016
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