Ainda guardo
os ‘Montes Pintados‘, o vinho que homenageia o seu pai, outro homem grande, o
vinho que me ofereceu naquela tarde suave em que o visitei e em que conheci a
Casa de Santo Isidro – para mim já tão familiar do carimbo sóbrio dos sobrescritos
que durante tempos chegaram à minha caixa de correio. Ainda guardo todas essas
cartas e também os recortes d’ “O Arrais” que gentilmente me foi enviando.
Ainda guardo o carinho com que acompanhou, mesmo que à distância, o meu
projecto sobre a república de estudantes de Coimbra de que foi fundador e que
(em boa hora) escolhi como objecto de investigação. Na verdade, encontrámo-nos
somente três vezes – uma (a última) em Peso da Régua, como disse, duas em
fins-de-semana ‘palacianos’ (ou não fosse “a melhor malta” a do Palácio da
Loucura), em momentos quase inenarráveis em que, nas suas palavras (Tomar, Junho
de 2003), “parecia explodir uma alegria que ficou por gastar em Coimbra”. Contudo,
a nossa amizade epistolar faz irremediavelmente parte da minha história.
Ainda guardo
o entusiasmo e a jovialidade das suas palavras – ao telefone e em cartas
demoradas e explicativas, quando paciente e generosamente me relatou os seus
tempos de estudante partilhados com ‘irmãos’, para além do mano João, que ainda
conheci, no Porto. Guardo páginas e páginas de letra fina, que me chegavam como
resposta às minhas listas de questões (sempre enormes, eu abusava…), logo dois
dias depois, pelo correio, com o tal carimbo. Obrigada por ter entendido com
rara lucidez a minha necessidade de ‘limpar arestas’ deformadas pelo tempo, e obrigada
pelo esforço de memória que lhe pedi sem rodeios. Eu abusava, face ao seu
ânimo, face ao seu contentamento e face ao seu espírito livre, a discorrer com
a graça que o caracterizava sobre a vida de outrora da cidade do Mondego – no
‘cotovelo’ do tempo, num emaranhado de ruas estreitas da Alta de Coimbra,
becos, risos, vielas, as serenatas, a solidariedade, o vinho do pipo, a amizade
e a saudade, piadas como serpentinas, episódios mil, com contas a pagar e
muitos cravanços consentidos. Volto às cartas, e a primeira que me vem à mão
tem esta confissão – “numerei as respostas às suas perguntas – às vezes a
memória fica a doer, de tanto procurar servi-la com exactidão”. Isto é ouro,
Dr. Camilo.
E ainda
guardo (como não?) a recordação do último parágrafo da carta que recebi na
véspera da apresentação do meu primeiro livro: “na minha esquina de mendigo de
glóbulos, estarei a aplaudir o livro Viver
numa República de Estudantes de Coimbra – A Real República Palácio da Loucura,
1960-70, da Dra. Teresa Carreiro”. Tenho-as de cabeça e no coração. Ainda
guardo a emoção, o desgosto, a comoção com que recebi naquele dia, logo depois
do almoço, estas palavras em letra inconfundível e tão familiar para mim.
Mais: guardo
o remorso de o Dr. Camilo não ter já recebido o meu agradecimento escrito pelo
último livro da sua autoria com que me presenteou (soube-o pela esposa, num
grande aperto de garganta). Tenho os seus livros perto de mim e espreito-os sempre numa
diferente sequência de lugares e de rostos. E de si guardo uma saudade grande.
Está lá sempre, intacto.
Deixo aqui as minhas maiores felicitações
pela iniciativa de o homenagearem, Dr. Camilo.
Teresa Carreiro
Coimbra, Março 2016
Que terno e comovente testemunho.
ResponderEliminarGostei muito.