José Braz Fernandes- O Primeiro Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua |
Vão muito quentes e muito secos estes primeiros dias de
Setembro e lavraram incêndios florestais de norte a sul do país, com centenas e
centenas de bombeiros a fazer-lhes frente, sem descanso e quase exaustos. Quem
mo diz é a Televisão, que é incendiária de seu natural. Diz-mo a toda a hora,
insistentemente, como a alimentar e a estimular a psicopatia dos pirómanos,
assim refeitos e deliciados diante de muito espectáculo de fogo e labaredas.
Por momentos, estou sentado numa sala da minha casa paterna e
tenho diante de mim uma rica lareira de aquecimento, uma lareira que por esta
altura do ano se mantém varrida e extinta, como que em natural hibernação. Mas,
nos dias mais frios e mais invernosos, a quentura da lareira não deixa de ser
germe de convívio, de aconchego e até de boas memórias. Já o disse o saudoso
médico e escritor João de Araújo Correia no prefácio do livro de contos Cinza do Lar. Disse esta bela frase: “ Do monte de cinzas, quando se esborralha,
surgem centelhas vivas que a imaginação exalça e multiplica.”
Por isso é que eu, nestes dias quentes de Estio, quero fazer
de conta. Fazer de conta que esta lareira que tenho aqui em hibernação, diante
de mim, é uma lareira de boa quentura e aconchego com um borralho de cinzas a
estimular-me a imaginação e os afectos. Já comecei a remexer as cinzas do
borralho e já desprendi centelhas e mais centelhas, algumas de uma vivacidade
cintilante e outras já o seu tanto amortiçadas.
Uma das mais vivas até me pareceu figurar o meu bisavô
materno José Braz Fernandes que está ali em fotografia antiga pendurada na
parede mesmo ao lado da lareira. Tem umas barbas venerandas, quase patriarcais,
e um olhar meio perdido nos longes do século passado. E uma centelha mais
brincalhona leva-me a pensar que eu, um bisneto ainda miúdo, estou sentado nos
seus joelhos, a puxar-lhes as barbas, como que a divertir a tenrura dos meus
anos.
Não conheci o meu bisavô mas dizem-me que ele foi o primeiro
presidente dos nossos bombeiros e eu digo-lhe, à puridade, que quase vi nascer
o actual edifício do quartel. Viu-o ainda no nascedoiro mas já uma sólida
estrutura de betão, vigamentos, colunas, degraus e patamares sem reboco nem
caiação, ainda sem grande serventia mas já a simular o que viria a ser depois,
um belo e invejável edifício no tecido urbano da cidade. A frontaria é, por si
só, uma expressiva legenda de vida por
vida, digamos um brasão a distinguir qualquer soldado da paz. Uma frontaria
de granito ricamente aparelhado, de mais a mais com a arte do bom cinzel. São
todos os pormenores, todos os símbolos e alegorias, toda uma fachada a poder
olhar, com olhos envaidecidos, o alto e incaracterístico prédio que lhe puseram
defronte, como um intruso, a tolher a largueza dos horizontes.
Valha-nos que uma centelha vivaça vem agora a terreiro a
rememorar a fanfarra dos bombeiros. É a refinada cadência das caixas, cadência
batida e rebatida, é o som mais alto, mais gordo e estrondeado dos bombos, é o
sopro aberto, metálico e vibrante dos clarins, toda uma explosão de
sonoridades, de entusiasmo e de festa, sempre desdobrada em ecos repetidos.
Uma centelha também vivaça vem dizer-me que, na minha
condição de médico, fui responsável pelo serviço de urgência do nosso hospital,
semana após semana. Nessa conformidade, fui tendo sempre um convívio estreito,
franco e amistoso com os nossos bombeiros. Com aviso da sirene ambulante ou
mesmo sem aviso, os bombeiros traziam-me à urgência os casos mais variados,
fosse um corpo estropiado, um coração desfalecido, uns copos mal bebidos, uma
mulher de mau parir…às vezes umas sacholadas de instintiva ruindade como se a
justiça popular, nem sempre aquietada, fosse o melhor modo de dirimir os
conflitos, no terreiro das más consciências.
Os bombeiros traziam-me os
“casos” e havia sempre um cumprimento ou um gesto de mútuo respeito e
compreensão como se cada um de nós tivesse uma missão a cumprir, nos caminhos
da solidariedade.
Do fogo quase extinto ainda surgiu uma centelha de breve
cintilação a relembrar-me o incêndio que vi daqui de Remostias e da minha casa
paterna nos altinhos do Peso. Foi mesmo no enfiamento dos meus horizontes e
soube depois que tudo tinha começado no fogo brando duma lareira de pobres, uma
daquelas lareiras onde se aquecem os potes do caldo e das batatas e dão até para
aconchegar o gato à mornidão das cinzas.
Já não há nenhum borralho na minha lareira imaginada e só um
ténue clarão, talvez um fogo-fátuo parece desprender-se do eterno descanso do
meu bisavô.
Manuel Braz de Magalhães
PS- Texto escrito em 4
de Setembro no português da minha escola e do qual não abdico.
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