Diário Douro
Autor: Miguel Torga
Fotografias: Paulo Magalhães
Editora: Caixotim Ediçoes, 2007
"O reino maravilhoso já não existe. Existem - em seu lugar- paisagens, declives, montanhas, enseadas junto do rio mais belo que conheço, esconderijos pelas colinas, florestas que resistem ao granizo do tempo. E existe a luz, a luz fantástica do Douro, a luz misteriosa das suas águas e da poeira que vai de uma margem a outra: falo dessa luz porque sempre identificou, na minha memória, uma paisagem condenada a ser admirada não pela sua beleza monumental - criada do nada - mas também pela sua história e pelo sofrimento que evoca. Construída degrau a degrau, elaborada nos seus muros, nas suas pedras, nas suas sombras, nos seus carreiros de pó e lama, subindo e descendo as serras, levando a aldeias inóspitas ou a clareiras no meio da desolação geral.
(...)
O reino maravilhoso apenas existe se for visto do céu, sim: é uma paisagem.
(...)
Há coisas que explicamos. E há coisas que não têm explicação - dizemos delas que emanam do sagrado que no Douro ainda nos cerca cerca e nos comove. A descrição do geógrafo não é, por isso, suficiente para dar conta desses sobressaltos que anunciam a ressurreição do mundo e o recomeço da espécie, entre choupos que delimitam o leito do rio e silvados que foram rasgados para dar passagem à estranha procissão de duendes, povos aflitos, espíritos da tarde, casais de enamorados, casas brancas entre olivais, amores secretos, rosmaninho das ladeiras, giestas de fim de estação, urge das alturas, bailes nocturnos de bruxas, nuvens de pó se desprendem à passagem das tempestades, brincadeiras de recreio de escola, barcos que recolhem à margem do rio, em ancoradouros iluminados e protegidos. Essa estranha procissão, dizia eu, é mais do que a cosmogonia que lhe dá origem - uma fé quase inabalável no princípio das coisas e nas recordações que duram um instante, enquanto vêm à memória as cenas familiares do meu douro, do Douro sem explicação. O canto doce das vindimas, para esclarecer a dificuldade de viver. O ruído de britar a amêndoa, Inverno fora. O chamamento à romaria. Um adro distante onde trocámos palavras, onde tivemos um nome. Um sinal vindo do céu.
Maio de 207
Francisco José Viegas
E todavia este homem, F. J. Viegas, curvou-se perante a barragem de Foz-Tua, esse escarro criminoso lançado sobre a região. Tal como abraçou o AO90, essa outra chaga purulenta da decadência nacional e que Torga só poderia rejeitar.
ResponderEliminarCosta