sexta-feira, 12 de setembro de 2014

PAISAGENS





                                                                                                                               Paulo Varela Gomes

Nas línguas ocidentais, tanto aquelas que derivam do latim como as anglo-saxónicas, o termo paisagem resulta de um nome que significa região e de um sufixo que quer dizer enquadramento. A paisagem é, portanto, a região que vemos e que representamos. Desde o final da Idade Média até praticamente aos nossos dias, a palavra pertenceu a grandes áreas de conhecimento como a História, a Geografia e a Arte mas, em tempos recentes, com o carácter cada vez mais complexo do conhecimento técnico e científico contemporâneos, a ideia de paisagem tem-se desdobrado em significados diferentes. Já no século XIX foi-se afirmando a ideia da paisagem enquanto sistema – e não imagem ou enquadramento – resultante de factores físicos, químicos, biológicos e humanos.
Pelo menos desde Homero, a paisagem enquanto vista é uma criação humana. Percorrendo a história das artes visuais, encontramos na Antiguidade greco-romana as primeiras representações da paisagem, vemo-las ressurgir, embora de outra maneira, na China dos séculos X e seguintes e na Europa do final da Idade Média e do Renascimento. Até mesmo os lugares que se caracterizam por uma baixíssima densidade histórica (a paisagem árctica, o deserto, as grandes altitudes,  os oceanos) contêm vestígios da cultura, do gosto e da necessidade dos seres humanos, embora só há relativamente pouco tempo, desde o século XIX romântico, este género de paisagens rarefeitas tenha interessado a produção de imagens por parte de historiadores, artistas e escritores.
A catástrofe e a desordem causadas pela revolução industrial, tiveram como consequência maior, no que aqui nos importa, o facto de que a paisagem rural a que nos habituámos a contemplar tanto nos museus como nos campos nos parece uma paisagem muito mais bonita do que aquilo que sucedeu nos últimos duzentos anos, sobretudo de aceitarmos o equilíbrio, a variedade e a harmonia como os conceitos chave da beleza tal como vem sido empreendida pelo Ocidente e o Extremo Oriente.
De facto, não pode legitimamente duvidar de que a paisagem campestre foi brutalmente desfeada nos últimos dois séculos quem quer que tenha observado imagens dos campos e povoações anteriores à revolução industrial e tenha lido as observações dos homens e das mulheres que tinham por hábito viajar, desenhar e descrever aquilo que viam.
Todavia, será legítimo deduzir desta observação que a história da paisagem rural tenha entrado em “decadência” com a revolução industrial e seja, por toda a parte e por sistema, mais feia do que era no passado? Não haverá excepções? Deveremos atrever-nos a pensar que certas regiões, em determinadas circunstâncias históricas, passaram por um processo histórico que, em vez de se submeter ao fatalismo humano da fealdade, passou pelo prazer das coisas belas antes?   
Olhemos para a país que nos saiu em infortúnio histórico. Quando pensamos na maioria das paisagens existentes em Portugal, é com melancolia que verificamos que grande parte do país é constituído por cidades e subúrbios desfeados pelo subdesenvolvimento ou o falso desenvolvimento, por aldeias miseráveis e desordenadas, por matas e florestas de eucalipto e pinheiro bravo, por lixeiras escondidas no sopé das encostas, por eólicas colocadas ao Deus dará sobre cada cumeada.
Está tudo está cada vez pior, concluímos, então.
Eu, que já estou vivo há mais de sessenta anos, sei que o país que conheci há quarenta ou cinquenta não era o horror que é hoje. Era pobre, era frequentemente deixado aos Deus dará, mas não era o nojo que nos envergonha a todos.
Todavia, se desenrolar na minha mente a carta paisagística do país, encontro três regiões-paisagem, passe o pleonasmo, que não só se distinguem positivamente no quadro da Europa como, ao contrário do que costuma sugerir-se, é provável que sejam hoje, neste desgraçado mundo pós-industrial da desarmonia, do desequilíbrio e do aborrecimento, mais belas do que alguma vez foram em qualquer época. Os homens não deram cabo destas regiões. Reinventaram-nas: não estragaram nem repetiram o que estava feito. O resultado da sua actividade é positivo.
Estas regiões são os Açores, o Alentejo e o Alto Douro.
O meu amigo duriense José Alfredo Almeida pediu-me que escrevesse sobre o “seu” Douro, tarefa que para mim é mais difícil do que escrever sobre os Açores ou o Alentejo, regiões que conheço muito melhor.
No entanto, à medida que observei imagens antigas e recentes e li a prosa de escritores de outros tempos, tomei nota que tem muito de comum o curso que, enquanto paisagens fabricadas pelo homem, seguiram o Alto Douro, o Alentejo e os Açores entre os séculos XVI e os nossos dias.
Os Açores hão-de ter sido em tempos remotos uma espécie de versão maninha do Jardim do Éden, o Alentejo foi lavrado, plantado e construído por romanos, godos, norte-africanos e árabes, e o mesmo sucedeu ao Alto Douro. Mas, se nem os cultivos foram iguais, nem os ritmos históricos paralelos, o resultado foi, nas três regiões, a produção de uma paisagem profundamente humanizada de um ponto de vista não apenas económico mas também estético. Ao observarmos os prados, aldeias e montes dos Açores, as pardas vilas históricas do Alentejo, as cores vivas da primavera dos seus campos, as grandes searas que lhe douram o verão, ao admirarmos o rio Douro a partir de uma varanda de quinta ou de um barco pachorrento, conseguimos imaginar as três etapas da história destas paisagens: quando foram mais belas que nunca, o momento em que estiveram em risco de desaparecer, e a ressurreição ocorrida nos nossos dias.   
O primeiro tempo foi o da paisagem habitada, pluricultural e rica: era já ela que triunfava no Douro quando Rui Fernandes escreveu entre 1531 e 1532 a sua “Descripção do terreno em roda da cidade de Lamego duas léguas” ou quando, quase cem anos depois, Manuel Severim de Faria, numa longa viagem entre Évora e Miranda do Douro, em 1609, observou – com uma admiração com a qual só temos uma relação histórica porque a paisagem já quase não existe assim – “a subida de uma serra altíssima, a qual desce em profundíssimos vales tão íngreme e alcantilada que mete pavor aos que olham para baixo e contudo pela multidão de gente está toda esta empinada encosta cultivada de vinhataria excelente”.
Mas não era só o vinho. Ambos os memorialistas e outros escritores descreveram um território rico do mais variado tipo de árvores de fruta, figueiras, pereiras, cerejeiras, pessegueiros, laranjais, ameixoeiras, amendoeiras, hortas carregadas de ervilhas e favas, instalações manufactureiras de linho e curtumes. Ao mesmo tempo, Manuel Severim de Faria anota as modificações que a paisagem vem sofrendo pela mão dos homens: “Os olivais são modernos porque de vinte anos a esta parte se começaram a plantar que até então se não beneficiavam tais árvores neste território”. As armadilhas da história são assim: os olivais do Douro, que hoje estão a desaparecer rapidamente em favor da vinha apareceram na região no final do século XVI para servirem os fins que ainda servem: eram elementos de bordadura da vinha e dos socalcos.
Depois, veio o tempo da mono-cultura, o grande ciclo exportador do vinho para o norte da Europa que afectou a paisagem duriense de uma maneira tão drástica quando o ciclo da laranja o fez nos Açores. Multiplicaram-se as quintas mas empobreceram as aldeias, os cultivos que davam de comer às pessoas desaparecem em favor do vinho que dá de beber a outros. As encostas durienses iam mudando, drapeadas de socalcos um pouco menos vertiginosos, e nos Açores surgiramm as laranjeiras, os muros de pedra e as grandes árvores para as proteger do vento marítimo. No Alentejo, um tempo mais lento continuou a correr em volta do cereal, da oliveira, da azinheira e do gado.
A praga da cochonilha nos laranjais dos Açores teve início menos de três décadas antes da fatídica chegada do oídio e da filoxera ao Douro. Os laranjais atlânticos nunca mais recuperaram e uma outra paisagem veio substitui-los: os Açores da pesca, dos grandes prados, do gado, das fábricas de queijo, da emigração. Já no Douro, enquanto as doenças foram finalmente dominadas e o barco rabelo desapareceu substituído pelo caminho de ferro e depois pelos camiões, as encostas ganharam uma graça menos íngreme, deitaram socalcos e patamares a perder de vista, apareceram os vinhedos verticais, quer dizer, contra as curvas de nível que serviram a forma da região (a sua paisagem) desde há séculos.
O turismo é a mais recente novidade nestas três regiões – e, longe de estragar tudo como sucedeu um pouco para toda a parte, a paisagem ganhou outras cores, com as velhas casas arranjadas, os muros reerguidos, os montes alentejanos que tanto os portugueses como os outros parecem ter finalmente descoberto como ilhas verdes e cheias de água no meio da planície gentilmente ondulada, as grandes quintas durienses que perdem em carácter, é certo, aquilo que ganham em clientela, conforto, tardes de delícia.
Nem o Douro, nem o Alentejo, nem os Açores são regiões de praia. É talvez por isso que, sobrevivendo com o tempo e transformando-se como este ordena, sem serem submetidas à pressão da anti-paisagem (que é a pressão da pressa e do gozo), talvez possam evitar as multidões e não perder a alma.
Paisagem é isto, a maneira de olhar e de escrever de Eça de Queiroz. Mais de um século depois, o Douro já não é exactamente assim mas reparem como Eça enquadra a região que está a ver e no-la oferece com a generosidade de quem compõe um quadro:
 “Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até altos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para alem, outros socalcos, de um verde pálido de reseda, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul.”(Eça de Queiroz, “A Cidade e as Serras”, 1901)

 set/2014 

2 comentários: