“Sempre imaginei o paraíso como
uma grande biblioteca” (Jorge Luís Borges)
Estou no alto do Quartel
Delfim Ferreira, na varanda da Biblioteca dos Bombeiros, no terceiro piso de um
dos edifícios mais bonitos da Régua, onde sobressai uma imponente fachada
esculpida em granito pela hábil mão de um grande mestre pedreiro, a observar a
paisagem do além Douro, as vinhas de cores outonais que serpenteiam o Vale
Abraão e, ao fundo do Salgueiral, uma curva do rio a espreguiçar-se, numa manhã
intensa de luz.
Quando, há mais de cem anos, se formaram os bombeiros da
Régua, equipados de um carro bomba e algum material rudimentar para apagar
fogos, estavam bem longe de imaginar que a casa
de leitura, que começou numa
velha estante de mogno cheia de livros oferecidos, se tornaria, desde então, um
lugar cultural de referência na Régua.
Quem ainda conheceu
essa velha estante de livros e se deslumbrou com ela foi João de Araújo Correia
quando, muito novo, acompanhava o seu pai, ao tempo bombeiro voluntário, ao
quartel. Mais tarde, o homem e o escritor, sem sair do seu sagrado eremitério e
com a ajuda dos seus amigos de Lisboa, conseguiu convencer a Fundação
Gulbenkian, nos inícios dos anos 60, a fazer da velha estante da sua infância
uma biblioteca ordenada, catalogada, com mais obras literárias e edições recentes.
Se assim o soube idealizar, depressa lhe fizeram a vontade e nasceu a
Biblioteca Dr. Maximiano de Lemos, com livros oferecidos pela benemérita
instituição, o que, naquele tempo, foi motivo
de regozijo para muitos jovens leitores, ávidos
de descobrir novos autores.
Também eu frequentei
esta moderna Biblioteca dos Bombeiros da Régua no meu tempo de adolescente. A
partir dos meus treze anos tornou-se um lugar de passagem obrigatória, três ou
quatro vezes por mês. A bem dizer, eu estava a iniciar-me nos livros, em novas
leituras e autores desconhecidos que iam despertar a minha imaginação para lá
das portas do pequeno mundo que, até àquele momento, estava ao meu alcance e me
era visível da varanda da biblioteca. Confesso que,
não sendo um admirador de ficção científica, procurei naquela biblioteca, por
recomendação de um amigo, um livro com o estranho título de Fahrenheit 451, da autoria do escritor americano Ray
Bradbury,
de 1953. Mal eu sabia que nele ia encontrar, como personagem principal, um
bombeiro encarregado não de apagar os
incêndios, mas de queimar livros. Sim, aquele bombeiro de nome Montag tinha a
missão de queimar LIVROS…! Para mim, estava muito claro que a função dos
bombeiros nunca seria essa. Queimar livros, um acto que resume
apagar, incinerar o conhecimento, a ilusão, a magia e a memória do Universo. A
princípio pensei que o autor se tivesse
enganado, mas percebi que, admirador de livros e de bibliotecas, onde até
escreveu aquela sua obra, pretendia fazer uma crítica aos regimes totalitários
de então, que viam o livro como um perigo e um inimigo, ao mesmo tempo que
satirizava o poder da televisão e a alienação que ela exerce sobre a maioria
das pessoas.
Se hoje recordo o livro que fala de uma missão que nunca será a dos Soldados
da Paz é porque quero voltar, ainda que fechada ao público, à Biblioteca dos
Bombeiros, com tempo para revisitar livros raros que ali se guardam, sempre à
espera de novos leitores. Quero também lembrar o nobre exemplo de cidadania dos
primeiros bombeiros e o seu contributo para organizar uma biblioteca como a
nossa. Eram homens generosos, sensíveis e que apreciavam a cultura como uma
forma de valorizar e enriquecer as suas vidas. Eles foram pioneiros numa
atitude que, naquele tempo, foi aplaudida e acarinhada também pela sociedade
civil. De uma pequena estante de livros fizeram uma biblioteca preservada e mantida
pelas gerações vindouras, que estimulou os
hábitos de leitura e que cresceu com a oferta de milhares de exemplares de
colecções de livros raros. Sem
terem lido o romance Fahrenheit 451, que haveria de ser publicado na nossa época como
uma obra que pretendia prever o futuro, os primeiros bombeiros da Régua conheciam o valor dos
livros e a importância de ter uma biblioteca. Entre outros, tiveram à sua
disposição na velha estante autores portugueses e estrangeiros, os clássicos e
os contemporâneos, e até aqueles que, sendo naturais da Régua, tinham sido
publicados a nível nacional, como Afonso Soares, Bernardino Zagalo e Mário
Bernardes Pereira. Para além de obras esquecidas destes nossos conterrâneos,
encontrei um livro do poeta ultra-romântico João de Lemos (1819-1890),
celebrizado pela poesia “A Lua de Londres”,
que começa com estes memoráveis
versos:
É noite. O astro saudoso
rompe a custo um plúmbeo céu,
tolda-lhe o rosto formoso
alvacento, húmido véu,
traz perdida a cor de prata,
nas águas não se retrata,
não beija no campo a flor,
não traz cortejo de estrelas,
não fala de amor às belas,
não fala aos homens de amor.
O livro do poeta reguense intitula-se Canções da Tarde e a sua primeira edição saiu na Typografia Portuguesa, de
Lisboa, em 1875. Sobre esta obra em concreto não se sabe como a crítica fez a
sua recensão, mas é interessante salientar que a poesia
deste autor mereceu apreciações literárias
positivas, como esta de J. A. Barreiros:
“cantou o amor, Deus, a Pátria, sentimentos íntimos, em versos de acento
melancólico e de grande emoção lírica. (…) O ritmo musical, em algumas
composições, é de excelente efeito e apropriado à declamação”. O poeta
ultra-romântico teve fiéis leitores e, apesar de as suas obras não serem
actualmente reeditadas, o seu nome está referenciado nos compêndios da história
da literatura portuguesa como um dos poetas mais marcantes da segunda geração
romântica.
Costuma dizer-se que “por trás de
cada livro há uma pessoa” e por trás daquele exemplar, encadernado numa capa
dura, de Canções da Tarde está alguém muito especial, a pessoa a quem pertenceu o
livro, uma benfeitora que, depois de o usar,
entendeu oferecê-lo à Biblioteca da Real Associação Humanitária dos “Bombeiros
Voluntários” do Pezo da Regoa. Essa mulher
não quis deixar a sua dádiva no anonimato e, na capa do exemplar, fez questão
de a assinalar, escrevendo um “offerece”, a que acrescentou, numa
delicada caligrafia em tinta permanente, a sua identificação. Ainda bem que anotou o seu nome, ficamos
a conhecer a sua admiração literária
pelos versos escritos por um poeta reguense e, porventura, o gosto das senhoras
do seu tempo pela poesia. Mas também ficamos a saber que as obras de poesia
romântica rechearam a primitiva estante. A senhora que ofereceu um exemplar de Canções da Tarde foi a D. Leonor Cristina Ermida de Magalhães,
esposa do Comandante Manuel Maria de Magalhães, ele que publicou versos
românticos nos jornais reguenses.
A pequena vila da Régua que, há mais de cem anos, aspirava a ser o centro
comercial e vinhateiro do Douro, viu surgir, no velho
Quartel do Largo da Chafarica (hoje conhecido por Largo dos Aviadores), de uma
velha estante de livros a sua primeira biblioteca pública graças ao espírito
empreendedor dos bombeiros, de alguns dedicados directores e à ajuda de muitos
beneméritos anónimos.
A criação da Biblioteca Municipal do Peso da Régua não apaga o pioneirismo
daquela que hoje persiste hoje como a
famosa Biblioteca dos Bombeiros, motivo de orgulho de todos os associados.
José Alfredo
Almeida
Presidente
da Direcção da AHBV do Peso da Régua
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