quarta-feira, 30 de abril de 2014

A toutinegra do Passal

Desenho de Ana Margarida Almeida



"No exíguo lugarejo de Cadavais, cabeça e coração da enorme freguesia de Moreiras, morava um velho abade de oitenta primaveras.
Calvo, gorducho, um pouco atarracado, já quase media as passadas que dava e assobiava as palavras que dizia.
A casa do velhinho, escura como uma rocha e forte como um castelo, confinava do poente com a negra igreja românica que tanto honrava a freguesia, e dormia em cada noite enamorada pelas horas que desciam lá de cima, da torre do relógio.
À beira do cemitério, como sentinela fria e vigilante, sempre de pé em guarita natural, um brioso e bondoso cipreste abrigava generoso e feliz todos os pássaros que dele se aproximavam para dormir, casar e fazer ninho.
(...)
Meses depois, ao cair da tarde, os sinos da igreja tocaram a defunto...e as vozes repetiram aqui e além, correndo toda a aldeia:
-Morreu o senhor abade! Morreu o senhor abade!
No calor macio e frágil de um sol que se ia embora, as andorinhas beijavam-se abrigadas pelas abas dos telhados e os pardais espanejavam-se nos ramos das árvores depois do banho doce nas águas mornas no riacho, mas os cães do pároco, dando conta de tudo, uivavam pesarosos e nervosos como os lobos.
Quando o funeral levantou, e a urna saiu de casa, a toutinegra e o marido gritavam no cipreste como se lhes tivesse morrido o pai, e quando os paroquianos deixaram o cemitério e voltaram para as suas casas, um e outro esvoaçaram na direcção da sepultura e aí ficaram, tristes e em silêncio, sentados na terra nua, por longo tempo, a agradecer ao benfeitor da família e ao salvador dos filhos."

Joaquim Correia Duarte

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