Andei contigo no Liceu. Tivemos um enlevo
naquela idade em que tudo de bom nos parece definitivo. Não foi muito
duradouro, mas deu para troca de fotografias. Há dias, nesta época em que os
dias nos parecem inacabáveis, lembrei-me de viajar neste dentro de quatro
paredes, com destino a um dentro de mim. Um dentro do meu arquivo de
recordações. Elas são muitas, mais ou menos merecedoras de revivificação.
Algumas delas, as visuais, foram sendo, ao longo dos tempos, metodicamente
preservadas em álbuns de passado, até ao momento em que vão ficando entregues à
sua sorte, incorpóreas, preservadas por uma password sigilosa.
Esta menina bonita, de uma pernola à mostra,
por aí acima, de outra a ser pouso de chapéu de cores entrelaçadas, complemento
de macacão desportivo, essa moça airosa, de cabelos ondulados, em pose de
fotógrafo profissional, és tu, Maria da Conceição. Quem te viu, e quem te vê!
Encontrámo-nos, um dia destes, a dois
metros de distância, na fila do supermercado. Somos ambos viúvos e sem filhos.
Poderíamos ter refeito, tu com eu, as nossas vidas, ter juntado os trapinhos
sobreviventes. Seria o retomar velho de amor novo. Não calhou.
Sozinhos mas autónomos, vamos tomando
notas do que nos vai falhando nas despensas. Com a nossa desmemória, fica
sempre alguma coisa no ar, enquanto procuramos papelinhos e lápis. Lembram-me
bilhetinhos de segredos, trocados às escondidas. A letra perdeu a firmeza. O
lápis, de toque menos agressivo do que as bics, de tão pequeno quase nos cai
dos dedos. Somos de um tempo incompatível com desperdícios.
Uma vez por semana, mascaramo-nos e vamos às
compras, ainda desbengalados. Ao menos isso!
Reencontrámo-nos. Saudámo-nos com abraços e beijos de expressão. Os teus
olhos conservam o brilhozinho de outrora, mas perderam a malandrice adivinhada.
Não te via há tanto tempo! Engordaste. Onde vai a finura da tua cintura,
a rigidez das tuas carnes apetitosas! Estás flácida, murcha, desleixada, quase
feia. Diminuiu, pouco a pouco, a altura dos teus tacões. Foi-se-te, a vaidade.
Não te envergonham essas sapatorras, amigas de calos e de joanetes. Não te vi
as mãos. Luvas as escondiam. Seguravam elas um carrinho de compras, moda
imposta pela velhice ou pela debilidade física. Aquelas rodinhas são a salvação
de donas de casa mais ricas em anos. Os homens não se vergam a esse auxiliar de
transporte de bens. Não lhes permite o orgulho macho e viril...
O tempo em que pude confrontar-me com a tua
decrepitude (eu ainda sou um jovem aqui para as curvas…), não deu para avistar
mais pormenores. Retive o todo da tua imagem. A de uma senhora, sempre senhora,
que se está nas tintas para as tintas - “Os cabelos brancos são uma coroa de
honra”, lê-se no Livro dos Provérbios.
Não deu para queixas de maleitas. Eu estou
surdo. Não ouviria as tuas. Despedi-me de ti num gesto aprendido com a malta
jovem. Estiquei o polegar, erguendo-o em arco. Acho que, verbalizado,
significaria: tudo fixe! E disse-te adeus à maneira de novos e velhos. Com a mão esquerda. Aquela que te escrevia
cartas com erros ortográficos e caótica pontuação. Tu respondias-me num
português de aluna de Letras, em papel perfumado de violeta, e colocavas entre
as dobras uma pétala de flor.
Apesar de tudo, gostei de te vizinhar, no
passeio. Fechei os olhos, por segundos, e revi-te, re-ouvi-te, re-senti -te,
re-toquei-te. Passaram só sessenta anos!
1 de
Maio de 2020
M. Hercília Agarez
A ELEGÂNCIA" terna das palavras !!!
ResponderEliminar..Vivências "que se "retocam , por entre os dois "protagonistas " ..
..num "reencontro" inesperado ..talvez !!
Gostei imenso ..!!!!!!!