sábado, 9 de maio de 2020

É preciso acreditar




CONVITE


Vamos, ressuscitados, colher flores
Flores de giesta e tojo, oiro sem preço…
Vamos àquele cabeço
Engrinaldar a esperança!
Temos a Primavera na lembrança;
Temos calor no corpo entorpecido;
Vamos! Depressa!
A vida recomeça
A seiva acorda, nada está perdido!

                                                           Miguel Torga, Diário IX

   
   Vamos. Havemos de ir. Numa outra Primavera. Na próxima, se  puder ser. Serão outras, as flores, mas parecer-nos-ão mais bem parecidas, mais suaves ao tacto, de aroma mais fogoso. “A Vida passa lá fora”.  A vida parou cá dentro. Magoada, cinzenta, amachucada. Sentimos-lhe ausências. Não há jarras de flores frescas em nossas casas. Da janela, é tudo longes inalcansáveis. Os pássaros veem cada vez menos. Descem, cada vez menos, de céus deles. De pernadas de árvores, pousos seus, sua morada. Cá em baixo deixou de haver migalhas. Recolheram, as esplanadas. Passou quase de moda sacudir para a rua toalhas generosas para bicos miúdos. Um ou outro casal de melros esvoaça até à cidade, vestindo de luto palmos de verde. Não demoram. Toca-lhes cedo a recolher.
    As cerejas amaduram sem nós. Nos socalcos do Douro as vinhas dão esperançosos ares de boa colheita. As águas deslizam, em pequenez ou em grandeza, porque nada é  com elas. “Verdes são os campos / da cor de limão”. Verdes são os prados, são verdes os pastos.
    Temos murchos os lábios. Perdemos o jeito de sorrir, de beijar. Temos os braços descaídos,  derrotados. Engolimos afectos.  Afastamo-nos dos amigos. À distância, nem dá para ver a expressão dos seus olhos, agora em grandes planos. Sabemo-los tristes, desmaiados. Só as crianças são capazes de sorrir, “como bandos de pardais à solta”, numa saída breve, vigiada. Deixaram de entender a linguagem adulta. Como há-de explicar-se-lhes uma invsibilidade expressa em desenhos tão coloridos e engraçados como os brinquedos de que se cansaram?
   
    Esperemos. Sem falsas expectativas. Vai ficar tudo melhor. Se fizermos tudo bem. Então, aceitemos todos os convites, todos os desafios. Façamos de conta que a vida é uma laranja muito sumarenta. É preciso espremê-la até à última gota. Degustá-la. Mais do que nunca, brindemos  com todos e com cada um. Com quantos têm direito de permanecer nos nossos corações.
    


7 de Maio de 2020
M. Hercília Agarez

2 comentários:

  1. Afirma. se um presente , inquieto .. !!.. Impera , a vontade de Viver ..a cada dia , .. ..que passa ... !! Um acreditar .. repleto de esperança .. !!!!

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  2. Esconder os afectos, não abraçar, não beijar. É TRISTE.
    Esperar, é de momento o que nos resta.

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