quarta-feira, 13 de maio de 2020

Diário da quarentena

Foto:josé alfredo almeida



10 de Maio de 2020

    Vivemos num Maio que não sabe estar. De tão desnorteado, de tão inconstante, de tão imprevisível, leva-me a pôr a hipótese de, também a natureza, estar a sofrer de um qualquer vírus meteorológico. Que este mês é traiçoeiro como o seu irmão mais curto, di-lo a sabedoria popular. A caminho de calores de Verão, aconselha-nos a não guardarmos agasalhos, nem aquecedores. Se as cerejas se comem ao borralho em quenturas aldeãs de aroma saudável,  também o camponês aguenta bem a crossa.
 Como acontece com outras questões confusas, tão prolíficas como os cogumelos, faço perguntas e não obtenho, quase nunca, respostas. Chama-se a isto, ainda me lembro, interrogações retóricas. Pluralizando uma nota de desfecho do comentário semanal do Dr. José Miguel Júdice, não é uma, são muitas, as “perguntas sem resposta”. Perante evidências atmosféricas, sentidas mesmo em confinamento paciente e respeitador, eu acuso este mês de muitos adágios de estar a deixar-nos órfãos de Primavera.
    Ontem, pisando chão seco e caminhando a engolir ar fresco em quantidade bastante para armazenamento, sob um céu de sol à espreita, fui às compras. À saída do super, por sorte não tive um chilique. Um trovão tonitruante (passe a redundância), assessorado por “chuva oblíqua”, caída mais do que a cântaros, pôs-me coração e pernas tremeliquentos. As senhoras nuvens terão combinado parir no mesmo minuto, sem terem avisado vendedores de guarda-chuvas de dois por cinco euros. E quem quiser que se avenha… Não estive com meias medidas: abri o invólucro do alho francês e com ele cobri o toutiço, a parte mais vulnerável do feminino ser.
   
   Nem parece que estamos no tempo da flor, como lhe chamou D. Dinis, ao acusar os seus colegas provençais de só “soerem trobar no tempo da frol e non en outro”. Faço votos de que os nossos novos trovadores não deixem enferrujar a lira. Para já, cultivem o lirismo. Quando acabar tudo bem, talvez lhes apeteça ressuscitar a epopeia. Não faltam adamastores, nem velhos do Restelo. Concílios, há-os diariamente. Não de deuses, mas de profissionais de saúde. Aqueles que, em campos de batalha contra inimigo desconhecido, põem à prova a sua “força humana”. São eles os actuais heróis lusitanos. Esta não é guerra de Marte. Nas águas deste mar de ondas revoltosas, não reside Neptuno. Que Vénus, “Afeiçoada à gente lusitana / Por quantas qualidades via nela”, lhes dê, em tempos de outros feitos, de outras desafios, a sua bênção.

    Registo as frases do dia, eleitas por júri uni-pessoal: 1. “O corona-vírus é uma neurose colectiva”-  Bolsonabo. Sempre é mais elaborado o uso de neurose do que o de gripezinha... 2. “A nossa bandeira / jamais será vermelha” juram, convictos, seus   apoiantes embandeirados de amarelo, azul e verde. Estão a necessitar de uma aula de rima em slogans revolucionários. Contem connosco. Nisso (e em muitas outras coisas), damos cartas… Este jamais, ortograficamente luso-francês, soou-me melhor na língua de Victor Hugo, quando, em contexto aeropórtico, um ministro do XVII Governo Constitucional declarou, veemente e peremptoriamente: - na margem sul, jamais, jamais.


M. Hercília Agarez

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