sábado, 25 de agosto de 2018

Leva na cabeça o pote...





    Também vai à fonte, mas não descalça, como a Leanor de Camões. E o pote não está cheio de azeite, como o de Mofina Mendes, de Gil Vicente. Esta donzela  vai buscar água. Marca de um tempo em que ela jorrava, generosa, límpida, à prova de análises bacteriológicas, com dispensa de cloros purificadores.  Água! Houvesse-a na terra, para regar a novidade, para humidificar solos produtivos, em regos abertos à enxada. Para encher os poços. Para beber, para cozinhar, a bica nunca se negava a bocas de cântaros sequiosos, qual úbere seio materno.
    Que haveria de mágico na simples cena de uma figura feminina, rural, enroupada de humildade, mas com uma graciosidade adelgaçada, com um amparo de mãos seguras, a evitar desperdícios?  Quanto pesaria a vasilha, no fim da colheita? Não seria mais óbvio que a tarefa fosse empreendida por homens, de estrutura física mais robusta? Sim. É verdade. Mas eles andavam no campo, em lutas diárias pela sobrevivência, só interrompidas em domingos de missa e roupa lavada.
    Certo, certo, é ter esta imagem idílica desafiado poetas, músicos e pintores. Na poesia trovadoresca, medieval, a fonte surge como local de encontro da"amiga" com o "amigo", longe dos vigilantes olhares maternos:

                                   -  Dizeis filha, minha filha formosa,
                                   porque tardaste na fonte fria?
-                                  - Tenho um namorado. (versão actualizada).

    José Afonso musicou a redondilha, também camoniana, "Na fonte está Leanor". Francisco Fanhais interpretou uma adaptação neo-realista de "Descalça vai para a fonte". Também nesse registo estético glosou António Cabral, o grande poeta do Douro humano, o mote "Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura: / vai formosa e não segura". Começa, assim, a glosa:
           
                             Se tivesse umas chinelas
                                    Iria melhor...; mas não:
                                    co dinheiro das chinelas
                                    compra um pouco mais de pão.
                                    Virá o dia em que os pés
                                    não sintam a terra dura?*
           
    Na pintura abundam interpretações realistas da mulher jovem, vestida de longas roupas, equilibrando com mestria um pote de barro. Calcule-se que nem um Salvador Dali pré-surrealista escapou ao fascínio. Em La Mujer del cántaro encanta-nos, com as suas pinceladas coloridas, reminiscência de um impressionismo de pintor com catorze anos. Só que, neste quadro, o cântaro acrobático equilibra-se sozinho. Deixa livres mãos em descanso, contornando anca bamboleante.
     Vejam, que vale a pena!


* In, Poemas Durienses

M. Hercília Agarez
Vila Real, 25 de  Agosto de 2018

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