Foto:josé alfredo almeida |
A plácida superfície deleitosa para quem a
contempla esconde a fúria de um monstro. O Douro foi tirano, foi titâ. E
tal como Cronos sofreu, à força de braços a vingança dos filhos dos
montes que o ladeiam.
Quebraram-se
cachões onde as aguas se torciam entre os penedos, onde o arrais
falhando o rumo precipitaria a embarcação para o fundo dos sorvedouros
de homens e caibros. E o rio beberia o fruto da lavoura, penhor pelo
desafio.
Abriram-se pontões,
furaram-se torres de granito onde os barcos se amarravam esperando e
ouvindo o arfar dos bois, segurando contra a corrente os que subiam.
Mas
ainda assim o rio tinha carácter, brincava com os sentidos, pausava a
sua fúria num palmo de trecho e permitia que contemplassem os matos
desbravados, os arroteios feito vinhas, e quem as cuida soldados
vigilantes do senhor da terra, o veio de sangue de Torga.
Confrontemos as agruras dos lugares fatais com uma descrição de trinta de setembro de mil oitocentos e trinta e nove:
"Vogamos
com a corrente,que não era para consentir que o redobrar dos remos nos
roubasse veloz à perspectiva dessa maravilha rara, talvez única. Eram
seis horas e meia. A Regoa e a bela Ribeira de Jogueiros, e todos os
oiteiros do famoso Penaguião haviam desappareido detraz da volta do
Santinho. O rio, desviando-se ostensivamente para a esquerda [...], como
quem lhe custa largar um ponto de vista, que o encanta; perdendo enfim a
mira desses sítios deliciosos quebra aqui rápido para a direita e
precipita-se sobre as Caldas do Moledo, carrancudo, e murmurando."*
Ironia,
que o medo do murmúrio, em nada teve a ver com as paredes de betão que
hoje se erguem rio acima. Pra isso a linha férria serviu. Não faltou aos
homens a temeridade de ver-se sorvidos pela espuma.
E
se o corpo agora repousa porque as águas espalham as margens, a alma,
essa, que lhe aconteceu? O espelho que não foi a tempo de ter ninfas
porquanto essas servem mais capitais margens tem, nos intervalos das
ondas, o esgar das nossas caras. Gozamos a planura aquatica com o
escárnio pelas forças que moldaram este vale. Elevamos o engenho humano e
recostamo-nos olhando. Mas miramos as alturas plantadas com o orgulho
de provas dadas repousando num qualquer banco debaixo da sombra.
Quão belo, domámos um rio, e ele, domou-nos a nós.
*Chronica litteraria da nova academia dramatica, volume 1, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1840
Régua, 10 de Agosto de 2016
Luís Quinas Guerra
Um belo..excerto... !!
ResponderEliminarALMA ...CORAÇÂO ...VIDA...
O DOURO....