Foto:josé alfredo almeida |
Sonhei esta noite que estava na hora da minha morte. E porque queria
ir a bem, sem a tortura de vãos esbracejamentos, respirei fundo,
deitei-me e esperei. Nesse instante, contava vislumbrar uma luz branca
de fulgor magnético e sobrenatural, encontrar a minha mãe reconstruída,
abrindo o colo para mim, assistir ao desfile épico dos meus grandes
momentos e ter direito à verdade absoluta sobre o universo, aceitando
enfim os seus terrores e divindades.
Mas nada desse
romantismo me foi dado. Antes senti o corpo envolvido por uma cálida
doçura e pareceu-me que me fundia com a terra como se, ao invés da
elevação, a morte fosse o retorno à raiz. Depois, a magia possível aos
sonhos transformou a terra em água e, de ambos os lados do meu corpo,
levantaram-se duas encostas, vindo pousar no redondo dos cumes quatro
águias em atitude de vigia. Comecei a submergir devagarinho. Primeiro
senti a liquidez nas têmporas e ouvi o sussurro apaziguador de vidas
oriundas da nascente. Com o peso, o peito naufragou, duas ondas
encontraram-se no intervalo dos seios e aí ficaram as águas a borbulhar
como num lume brando e prolongado. Afundou depois o ventre, com a lisura
resgatada ao tempo da maior inocência.
Aos meus
pés, vi que o sol derramava sangue vivo no poente. Mexi-os devagar,
procurando neles a função de um leme. Inútil. Fui deslizando, sem
escolha, para a foz. Morri tal qual um rio a correr, no leito
inevitável, submetida à gravidade, em curva e contracurva, ao fim de uma
bela tarde de verão.
Olga Magalhães
Há textos, poucos, muito poucos, que reconstroem deus, pelo extremo exercício da beleza. Encontro, maravilhado, este. Divino, de tão humano. Humano, de tão divino.
ResponderEliminarObrigada, caro Xilre.
EliminarSempre humano e apenas humano, porque que não sei outra forma de olhar.
Um abraço.
perante as sensações que o texto me traz, é impossível não lhe agradecer (uma vez mais) a escrita. muito obrigada.
ResponderEliminarObrigada, Flor.
EliminarEssas sensações devem-se à sua disponibilidade para sentir, não ao texto.
Até já.
Há lá mais romântico (e simples) do que isto? Beijinhos
ResponderEliminarObrigada, Mãe Sabichona.
EliminarEspero que não se meta a interpretar este sonho :-)
Um abraço.
ALGO DE ::::::::MARAVILHOSO::
ResponderEliminarE DE UM REQUINTE MUITO :::PRÒPRIO:::!!!!
Obrigada, Anónimo
EliminarE desde quando o telúrico não é domínio celestial, ou o humano não é divino...?
ResponderEliminarGostei especialmente da estética que irrompe por todo o conteúdo.
Abraço, Olga.
Paulo, não me dificulte a vida com uma pergunta dessas numa caixa de comentários. Sabe bem que não estou habituada a esta interacção telegráfica...
EliminarUm abraço para si também.
A pergunta foi, obviamente, retórica; já o seu texto, sublime.
EliminarEstou a tentar responder-lhe de forma a não perder, mas esse olho fixo na sua imagem de perfil intimida-me à partida.
EliminarVou sair de mansinho e um dia destes passo lá na sua "casa" - onde não faltam textos sublimes - para lhe deixar uma pergunta retórica, a ver como se safa.
A fotografia ..entra ..suave e intensamente no.. "MARAVILHOSO"!!!!
ResponderEliminarSuscita ,,todo o momento ...por si só.!!!
Parabéns amigo , José Alfredo..!!!
Bom poder dizer-te ao vivo, bem debaixo de um texto teu, que é uma maravilha ler-te...
ResponderEliminarAbraço Olga.
Melhor ainda quando a coisa é recíproca.
EliminarUm abraço apertado e obrigada, CF.
A escrita da Olga tem o poder de me transmitir paz. Uma tranquilidade que em certos dias bebo sofregamente. Mesmo aqui, no leito de uma morte fria que nem o sol de sangue aos pés aqueceu, me senti em paz. E não foi só no fim, quando o texto nos devolve a uma tarde cálida de verão.
ResponderEliminar"a morte fosse o retorno à raiz" - lembra-me o poço do jardim da Quinta da Regaleira, em Sintra. Já visitou, Olga? Já desceu o poço? Se não o fez, recomendo.
Um abraço aos dois, obrigada.
Estive para lá ir há muito, muito pouco tempo. Mas os planos alteraram-se. Talvez este ano, mas como não fiz lista de resoluções não posso garantir :-)
EliminarUm grande abraço para si também, Susana.
Um belo texto para uma fotografia igualmente bela. É um privilégio lê-la, Mãe Preocupada. Não só pela forma como escreve - uma espécie de sonata perfeita em palavras -, como pelo que escreve. Tudo faz tanto sentido. Tudo me faz sentir.
ResponderEliminarObrigada aos dois :)
Obrigada, Miss Smile. Como já disse lá acima, à Flor, é da sua disponibilidade para sentir que vem o sentido do que escrevi. Mesmo uma sonata perfeita (da qual estou muito longe) é nada sem a generosidade dos ouvidos que a escutam.
EliminarAbraço.
O autor da fotografia, tirada no cais da Régua, no fim de uma quente tarde do último verão, agradece o elogio da Miss Smile.
EliminarE convida-a a regressar mais vezes ao vale Douro e desembarca na Régua, no cais da "Pátria Pequena, para revisitar esta luz fantástica dos dias ao entardecer e perder-se nesta escrita luminosa da Olga Magalhães.
Finalmente, encontro um espaço onde não só posso deixar um público elogio à sua escrita, como ainda posso sentir/ler as opiniões dos seus demais leitores. Todas em perfeita sintonia com o que penso. Obrigada por esta "interacção telegráfica" e, sobretudo, pela sua escrita.
ResponderEliminarAgradeço eu, Leonor. É bom saber que continua por aí. Um grande abraço.
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