Teresa Pizarro Beleza
Goethe, afinal, enganou-se. O “Balcão da Europa” não é em Dresden, na
Alemanha, mas aqui, no Norte de Portugal, na periferia (ou semi, se assim
preferirmos). Nas margens onde, afinal, se compreende o centro. Por aqui passou
a Guerra Peninsular e aqui se digladiaram liberais e absolutistas, como recorda
António Barreto no seu Douro (Inapa) “um livro escrito com paixão”, como me faz
notar o meu anfitrião — a paixão não fica mal a um sociólogo, nem mesmo a uma
jurista.
Estou sentada em frente de uma das mais belas vistas do mundo: o Alto Douro
olhado de Casal de Loivos, sete quilómetros a Norte do Pinhão, sempre a subir.
No centro da Região Demarcada do vinho do Porto e dos vinhos do Douro. Aqui
onde as relações semi-coloniais entre a Inglaterra e Portugal solidificaram —
tão claramente explicadas em Trade and
Power — Informal Colonialism in Anglo-portuguese Relations de Sandro
Sideri, que eu estudei com com avidez e afinco há uns vinte anos atrás, saberá
Deus porquê.
O Douro é a memória da origem do meu Avô paterno, o resto de terra que já
não é nossa, as cerejas brancas rijas e doces da minha infância, que chegavam a
Lisboa depois de uma longa viagem iniciada no Pinhão. Da talha cheia do melhor
azeite do mundo na despensa da minha Mãe, que às vezes se entornava um pouco
por descuido de algum de nós. Das nêsperas dulcíssimas e serôdias, que nos
davam a volta à barriga depois de um ataque incontrolável de gula. E, é claro,
das uvas. As uvas doces e insubstituíveis de quando eu era criança e pensava
que um dia poderia conhecer essa terra mágica de onde nos chegava,
misteriosamente, aquela doçura sumarenta em cestos largos e não muito fundos, de
sólida construção artesanal, tisnados pelo uso como os “cestos vindimos”. Morro
de vontade de levar um para casa, ou mesmo dois — são tão bonitos! — para
arrumar qualquer coisa (o pretexto é irrelevante...) mas como o levarei no
comboio, com greve à vista e tudo? A viagem Lisboa-Régua foi longuíssima e
aventurosa: quase oito horas de comboio — e, nas quatro iniciais, com o frenesi
dos telemóveis a, por uma vez, dar-me uma enorme vontade de rir (normalmente,
desenvolve em mim instintos assassinos, que contenho com alguma dificuldade).
Mão amiga colocou na minha um exemplar da Teoria geral do sentimento de
Nuno Júdice. É um dos poetas contemporâneos de que mais gosto. Pela primeira
vez, tenho consciência da sua evidente filiação Borgiana e pela milésima o prazer
de reconhecer afinidades electivas: Lord Byron, Emily Dickinson... A poesia de
Júdice liga bem com o Alto Douro, ainda que implique o desviar temporário do
olhar para longe das curvas do rio e da vinha. Mas o coração também tem de
parar e respirar — como lembrou o próprio Byron num dos seus mais conhecidos
poemas (“So we’ll go no more a-roving...”).
Enquanto o comboio anda e não anda, recordo o fim do Verão de 1988, em que
fiz o que creio ter sido uma das últimas viagens ferroviárias da Régua a Barca
d’Alva.
Quando embarcámos na Régua e consultámos os horários na estação, concluímos
que o comboio já não passava além do Pocinho. Só algum tempo mais tarde nos
apercebemos de que a viagem prosseguia até Barca d’Alva, o nosso objectivo. Aí
me lembro de almoçar gostosamente num lugar acolhedor e modesto e de ver uns
enormes pães redondos (devo ter comprado pelo menos dois ou três, é o mais
certo). O túnel que abriga a via na passagem da fronteira — via que se
prolongava até Salamanca — estava entregue aos morcegos (que maravilha seria,
poder ir de comboio do Porto a Salamanca, duas das mais belas cidades da
Península!).
Creio que foi já no regresso, no troço Barca d’Alva- Pocinho, que o Revisor
e o Maquinista nos acolheram na cabine da máquina. Contaram-nos histórias
fascinantes, desde as técnicas rápidas de espalhar informação sobre greves ou
outras acções de protesto de que os ferroviários dispunham pela natureza do
próprio meio onde trabalhavam, no tempo do Estado Novo, até à progressiva
degradação da via e à vandalização dos apeadeiros, com a instigação ou
cumplicidade das companhias de camionagem, que viam no comboio o último rival.
Em alguns pontos, a velocidade — eu ia observando o velocímetro — descia aos 20
ou 10 kms/hora...
A viagem é de uma beleza impressionante — como poderá saber quem se recorda
dela ou quem conhece o percurso feito de barco. Ainda não experimentei esta
última versão, em parte porque quero guardar intacta aquela recordação mágica,
em parte porque tenho um secreto receio de que os barcos que fazem a exploração
comercial da subida do rio tenham qualquer ideia sinistra de “música ambiente”,
“entretenimento a bordo” ou qualquer outra dessas maléficas invenções da
moderna ciência de estupidificação em massa dos turistas.
Voltarei em Novembro, se não vier antes, a pretexto da última sessão, em
Provezende, de umas jornadas sobre o Douro organizadas pela Fundação Miguel
Torga (Como o rosto dele se parecia com os traços mais agrestes da terra fria
transmontana... como a sua capacidade de descrever emoções era próxima da
beleza comovente das linhas quase Kandinskianas das vinhas do Alto Douro...)
Nessa altura, a vinha estará rubra do Outono e eu sei que a paisagem
melancólica e belísima me fará pensar que aqueles vermelhos são também o rasto
do sangue dos supliciados na Revolta do Porto. Recordarei a vivíssima descrição
de Arnaldo Gama (Um motim há cem anos — uso a edição de 1949, Porto, Livª
Simões Lopes, de M. Barreira). E as palavras (citadas no prefácio de Fernando
Pires de Lima) em que Ramalho Ortigão ridicularizava — como só ele sabia fazer
— as “ tantas sátiras dissaboridas e tantas parvidades com pretensões
maliciosas” dos críticos que desdenhavam a escrita do “laborioso e honrado
escritor”. E o sangue dos operários galegos que, sem condenação, ali sofreram a
dura pena de trabalhos forçados. Imagino esses escravos a partir o xisto e as
costas, construindo os socalcos debaixo do sol impiedoso... (Quererá José
Saramago, se o Nobel o deixar em paz, escrever um “Memorial do Douro”?). Mas
esse lado trágico da beleza do Alto Douro, a que se acrescenta ainda a secura
eloquente dos “mortórios”, é-lhe tão essencial como os desenlaces fatais da
grande dramaturgia clássica. E onde já se viu paixão como deve ser sem
tragédia, amor digno desse nome sem sofrimento?
Com a devida vénia — assim rezam os costumes na minha profissão —
transcrevo parte do final de um dos textos de José Saramago de que mais gosto:
Viagem a Portugal (Lx: Caminho, 1996; uso a 14ª edição):
“ (...) O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não
foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no
Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva
caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra
que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os
repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a
viagem. Sempre. [O viajante volta já.]”
In jornal "O Público" de 26-05-99
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