Vizinho de além rio

Aquilino Ribeiro-pintura de Bottelho 

"Aquilino Ribeiro é meu vizinho de além do rio…Se eu quiser visitá-lo em Soutosa, basta-me atravessar a pente, desviar-me para Moimenta da Beira e meter, pouco depois, `estrada de Barrelas. São dois pulos de automóvel pacato os que me separam da velha capital de Pêra e Peva.

Conheço Aquilino desde que me conheço, isto é, desde que aprendi a ler letra de forma. Em casa de meus pais, andavam de canto para canto, à mercê dos meus olhos e dos olhos das minhas irmãs, os primeiros tomos, já encadernados, de uma revista chamada Serões. No tomo correspondente a 1908, lá vinha Aquilino in ovo, com um pequeno conto urdido na minuciosa descrição da Festa dos Remédios – de Lamego.

Em 1913, já estudante no Porto, mas, encurralado na Escola Académica do Porto, passou-me despercebido o Jardim das Tormentas. Paciência… Não me sucedeu o mesmo com a Via Sinuosa nem com as Terras do Demo. Estas duas obras vieram ter comigo, já eu frequentava a Universidade. […]

De então em diante, acompanhei Aquilino, reconhecendo, a cada livro, que já o conhecia antes de o ler, pela primeira vez, na descrição dos Remédios. Conhecia-o em seu vocabulário, em torneios de frase peculiares à gente dos meus sítios, no retrato de figuras que tinham réplica na minha terra e em topónimos de além-Douro conhecidos aquém-Douro. […]

Os topónimos desciam À Régua com os carreteiros e os serranos que vinham vindimar. Era de sobre o Paiva a roga do Francisco, onde vinham capuchas do tempo de meu avô materno.[…]

Aquilino. Homem da Beira… Mas, dentro da Beira, homem da sua comarca. Deita a Viseu e ama Viseu como corte de seu reino. Mas, para onde quer que vá, franças e araganças, leva olhos serranos. É o que lhe dá cunho e o torna grande entre os maiores prosadores de língua portuguesa."

23 Abril de 1963

João de Araújo Correia in "Passos Perdidos"