imContos Realistas
(sobre os “contos bárbaros” de João Araújo Correia)
O Baptizado de Carlos Reis |
Paulo Varela Gomes
Já não está na moda a classificação ou
arrumação dos autores e artistas por estilos. A generalidade dos críticos
contemporâneos pensa que falar de estilo é simplificar a obra de um autor até
uma espécie de caricatura. Todavia, pode dizer-se dos estilos o mesmo que das
bruxas: não nos acreditamos neles, mas lá que existem, existem. Ou mais
precisamente: percebemos o carácter constrangedor e limitador que tem a
utilização da análise estilística, mas percebemos também que pode muitas vezes
ser útil.
A obra de João Araújo Correia mereceu ser
classificada recentemente com termos como “rústica”, ou “vernacular”, palavras
que dizem aquilo que querem dizer e não suscitam muitas dúvidas – são úteis,
portanto.
Já é mais problemática a expressão “clássico
moderno” que Eugénio Lisboa julgou ser apropriada à prosa do autor. É uma
expressão que faz a ponte entre duas palavras que durante muito tempo significaram
coisas opostas mas, alem disso, percebemos que Eugénio Lisboa não se está a
referir a estilos mas a posições ético-artísticas (um autor clássico é aquele
para quem a questão estilística é indiferente) e a um período histórico (a
modernidade).
É evidente que a prosa de João de Araújo
Correia é moderna. Não me refiro naturalmente ao modernismo literário da
vanguarda de Joyce, Proust, Musil, Broch, e outros escritores, que o autor,
aliás, detestava, mas àquilo que, entre o século XIX e a década de 1930, tanto
em literatura, como na música, nas artes plásticas e na arquitectura a
generalidade de opinião publicada e da critica designavam como moderno.
Tão pouco faço referência à Arte Nova
(ainda que o Quartel dos Bombeiros da Régua, que João de Araújo Correia tão bem
conhecia, possa ser classificado como um edifício Arte Nova). Este movimento
artístico foi criado por artistas e intelectuais que tomaram de empréstimo o
adjectivo “moderno”, de uso tão antigo quanto a cultura ocidental, e
utilizaram-no para distinguir um estilo específico, inventado por eles, que
teve designações muito variadas embora as suas formas estruturantes e
princípios fundamentais tenham sido semelhantes por toda a parte (Arte Nova, Art
Nouveau, Modernismo, Modern Style, Secessão, Jugendstil, Liberty, Escola de Amsterdão,
etc.).
A Arte Nova era coisa de vanguarda, uma
vanguarda naturalista que derivara do movimento – moderno, mais uma vez – das
Artes e Ofícios (“Arts & Crafts”), tão originalmente expresso em Portugal
pelas primeiras obras de Raul Lino, e representou a última e nostálgica
expressão do luxo da arte ocidental.
A escrita, a arte, a
arquitectura, a música modernas a que me estou aqui a referir a propósito dos
“Contos Bárbaros” (1939) gozaram de muito mais vasta popularidade que a Arte
Nova ou o modernismo radical, com os quais pouco tinham que ver em matéria de temática
e de vocabulário. Até às décadas de 1930 ou 1940, arte moderna era, para quase
toda a gente, o conjunto de movimentos artísticos que se referiam à vida
moderna, campestre ou citadina, pobre ou rica.
“Contos Bárbaros” é um excelente exemplo
desta modernidade – embora tenha sido escrita numa época já tardia em que a
ideia de obra “moderna” se começava a evaporar na história em favor de
definições estilísticas mais variadas e precisas ou de uma vasta reacção
anti-moderna que percorreu todo o ocidente e a Rússia.
Quem ler “Contos Bárbaros” não esquecerá a
sua temática. A tonalidade dominante da escrita é a invenção de personagens e
histórias muito mais do que a descrição de sítios. A sua escala é pequena, quase
sempre doméstica. No entanto, através de uma frase aqui, outra ali, o autor
consegue evocar em nós, indelevelmente, a grandeza do território onde nasceu e
viveu, o Alto Douro. Animados pela memoria dos lugares, ocorrem-nos imagens de
solares e casebres, aldeias e caminhos, fragas e vales abruptos, dias de poeira
quente, paisagens brancas com a neve a dobrar os ramos das árvores sobre o
chão, o sol claro da manhã, o luar branco no silêncio da noite.
Os
contos de João de Araújo Correia narram cada um a sua história mas inserem-se
numa generalidade muito evidente, uma paisagem humana e geográfica que não é um
simples pano de fundo para o desenrolar da narrativa mas a arquitectura que lhe
confere solidez. Esta arquitectura é construída com personagens-tipo que são
afinal estatutos sociais, como a fidalga, o lavrador, o pobre, e também com
lugares característicos como a aldeia, o solar, a igreja, o monte abandonado, a
vinha, o olival. Envolve estes personagens e lugares ficcionais uma atmosfera de
desolação, de silêncio, de escassez, aqui e ali interrompida por uma alegria
selvagem ou o mais negro dos sarcasmos.
O vocabulário de João de Araújo Correia
(uso a palavra em sentido lato porque inclui construção frásica e outros
aspectos da prosa), provém da sua vida e de uma genealogia de escritores
portugueses que, de Camilo, vem até Aquilino. Pode dizer-se que se trata de um
vocabulário rústico, ou seja hiper-tradicional, um vocabulário recreador da
tradição e, portanto natural e deliberadamente posto ao serviço da temática
local e rural que referi – e que é, afinal, uma temática realista. No entanto,
recordo que só me estou a referir a “Contos Bárbaros”. João de Araújo Correia,
numa carta inédita a Manuel Mendes datada de 1966 (cuja cópia me foi cedida
pela infatigável amizade de José Alfredo Almeida), uma carta escrita, portanto,
mais de um quarto de século depois do livro que me ocupa aqui, diz não
acreditar que tenha sido possível a Aquilino, “escritor serrano”, vir à cidade
sem que o smoking lhe assentasse mal... Mas haverá mais que um Aquilino, como
certamente houve vários Araújos Correia.
Retrato do Pai de Carlos Reis |
Repare-se nos dois
quadros do pintor Carlos Reis (1863-1940) que aqui mostro (“O Baptizado” e
“Retrato do Pai”). Quem tenha alguma vez lido João de Araújo Correia
reconhecerá alguns dos seus personagens e cenas-tipo bem como a própria factura
com que foram traçados. Nem pintor nem prosador fizeram figuras “bonitas”,
antes as desenharam e coloriram com a rudeza quente do verão campestre. Ambos
os autores foram buscar as palavras, as formas e as cores dos assuntos que
estavam a ver ou que imaginavam a cenas ou lugares que viram com os seus
próprios olhos. Se muitos chamam “naturalista” a este género de procedimento
artístico, por mim prefiro decididamente o termo realismo.
A palavra foi utilizada
desde meados do século XIX para referir os assuntos e temas de carácter
“popular” em literatura, nas artes plásticas e até na música (o “verismo”
operático, por exemplo) em oposição aos temas mitológicos e sacros que a arte
mais “elevada” preservava.
João de Araújo Correia escrevia sobre o lugar de onde
era mais conatural que natural. De facto, os seus contos não são a miragem de
um turista, o apontamento de um forasteiro, a busca local de uma beleza típica
para desfrute de outros. São tão reais, em literatura, como o rio, a encosta e
a festa de aldeia são reais na natureza. João de Araújo Correia “fez parte” do
Alto Douro e esta região ainda hoje é dificilmente compreensível sem a sua
memoria. Por mim, nunca diria que João de Araújo Correia, bem como Camilo ou
Aquilino, fossem escritores “universais”. Menos ainda que fossem escritores da
“literatura mundial”, essa água chilra cozinhada nos caldeirões das
universidades americanas contemporâneas. São escritores que, devidamente
traduzidos para outras línguas, serão nelas reconhecidos pelos leitores e
artistas que, em toda a parte, foram modernos.
Paisagem urbana de Domingues Alvarez |
Mas uma leitura mais cuidadosa dos “Contos Bárbaros”
faz-nos entrever outros aspectos da arte moderna, em que o realismo é como que
suspenso em favor de memorias artísticas de tempos mais longínquos, os do
romantismo, por exemplo, ou mais próximos: o simbolismo e o expressionismo. Aludem
a isso dois outros quadros de pintores portugueses que talvez nem precisem de
comentários ao serem apreciados conjuntamente com contos de João de Araújo
Correia: veja-se a paisagem urbana de Domingues Alvarez (1906-1942), datada de
1929, e leiam-se a “A Velha das Panelas” ou “Os Livros do Diabo”. Não há linhas
rectas ou paralelas, nenhum dos autores utiliza cores mornas, as formas dos
púcaros, tachos e panelas expostos na feira de Panoias morta e deserta têm o
mesmo espírito estrutural que as fachadas e as árvores da rua agreste de
Alvarez, ou da cena, à porta da igreja, em que a ama do padre Bento abre a
caixa de Pandora de ódios pacientemente acumulados.
Nocturno de António Carneiro |
O “Nocturno” do grande António Carneiro (1872-1930),
pintado em 1910, um dos muitos quadros deste género que pintou, faz-nos ver os ocres
e verdes surdos de tantos “Contos Bárbaros” que decorrem à noite e recordam uma
das mais singulares frases do autor, que o “Génesis” inspirou: “A noite […]
escura como devia ser o mundo antes de haver luz” (“Conto de Natal”).
De maneira mais romântica e pacífica, o autor refere o
luar entrevisto entre árvores, empenas e penedos. Chega mesmo a compor um
parágrafo quase modernista na sua invenção, quase romântico por aquilo que
sugere:
“[…] o som do luar vinha do jardim vetusto, contíguo
ao quarto, através da japoneira carcomida e das grades ferrugentas da janela.
Que lindo luar! Como ele se desfazia e se trocava em moedas de prata e de cobre
ao dar na coma dos carrascos, dos medronheiros e das cornalheitas! Aquele caminho,
que partia do jardim vetusto, para onde ia? Era um caminho ou um rio de luz?” (“Perdão”).
A inquietação ou a melancolia despertas pela noite e
o carácter enervado das formas não são características daquilo a que chamámos
realismo. Mas nenhuma destas pequenas guinadas temáticas ou vocabulares de João
de Araújo Correia o afastou das suas serras, do seu vale e rio, das suas vilas
e aldeias, dos personagens que conheceu ou imaginou.
Despeço-me dele aqui com palavras que ele próprio
escreveu no conto “O Beijo do Senhor Doutor”, palavras que, em algumas linhas, vão
da literatura romântica ao mais brutal realismo (esse desenlace fica por
transcrever para poupar a surpresa do leitor que o não conheça): “No céu havia estrelas, calmas como ele. No
entanto, nenhuma suportava um coração dorido. Ele era um mártir e um herói. Não
valeria mais, na sua escuridade, do que esses sóis tão luminosos como
impassíveis?”
Coimbra, 18 de Fevereiro de 2015
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