Evitava os
jardins. Poucas vezes os cruzava e ainda mais raramente ia em busca de um banco
onde se sentar. Concedia, a contragosto, que os bancos de jardim eram lugares
onde alguns poderiam urdir relações amorosas, mas também já aí observara homens
de idade a diferir a morte para outro dia, em lances vagarosos de cartas.
Tinha sido num
jardim que o amor, furtivo sob as sombras lentas, descobrira nela terreno inculto
e a havia invadido, com a desumanidade das suas ervas daninhas. Acrescentos
infelizes às paixões, que não suportou consentir. Forçaria pela vida fora abandonar
ou abrandar essa recordação, esse último entardecer de debilidade que a alterara.
Repudiou Afrodite e Eros e jurou interiormente obediência a um deus que lhe
oferecesse a impassibilidade do mundo. Um deus desconhecido capaz de a
apaziguar e de desvanecer os nós que o novelo da vida concebera no seu rodeio
contínuo. De aí em diante, só os jardins roíam (ou faziam mesmo, por
brevíssimos instantes, ruir) a sua indiferença pelo mundo, guiando-a até
memórias que não conseguira soterrar. Por isso se esquivava a fazer uso deles,
dos jardins e também dos instantes, contornando os primeiros em passadas
rápidas que extinguissem os segundos e favorecendo as ruas ladeadas de prédios
da cidade grande.
Existir converteu-se,
assim, numa suspensão da existência. Uma interrupção capaz de lhe permitir calibrar
as dúvidas que a assaltavam, geradas anos antes num jardim distante de uma vila
que eliminara da geografia da vida. Em certa medida, como se pensasse desistir e
o seu avesso lhe soletrasse o verbo inexistir, com todo o lastro contemporizador
ou benévolo que coubesse nessa lacónica audácia. Resignar-se a inexistir até
deixar verdadeiramente de existir. Empalidecer demoradamente como amarelece uma
fotografia velha de família que vai perdendo a sua importância no mundo. Seria
esta a comparação ajustada, até porque ainda se recordava de ter sido capturada,
numa dessas tardes que procurava banir da memória, na fundura da objetiva sustida
pelo alvo errado do seu amor. Imobilizada, ainda sem o olhar vindouro de animal
ferido, na precisa ocasião em que segurava um jornal e lia de modo lento um
poema de Antero, ignorante ainda do ocaso, do infortúnio do poeta. Esgotado o
fôlego da comparação que lhe ocorrera, lembrava-se então de ter lido algures
que os fotógrafos, segundo crenças de certas culturas, roubavam a alma daqueles
que captavam, e era isso, afinal, que sentia ter-lhe sucedido. Não apenas a alma
– também o coração. No caso dela. Ao poeta, talvez a foto fosse apenas mera comprovação
da perda retrospetiva da alma.
Haveria de ser
sempre leal à sua resolução de suspender o tempo. Outras vezes passaria em
frente a um jardim sem lograr já ver os velhos que esmoreciam de cartas aziagas
na mão. Ou que distraíam a vida com lembranças de uma época antiga. Nessas
alturas, era em vão que lutava: através do gradeamento, contemplava-se de novo,
a si mesma, com a sua leveza anterior, sentada no encosto de um banco, de
pernas cruzadas e com um dos pés pousado no assento, como adorava permanecer na
era em que os bancos de jardim eram lugar de espera feliz. Em que eram também o
tempo suspenso. De outra ordem e com menor peso.
Jorge Pinho
Porto, 20 de Outubro
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