Carta 33

"Meu amor,

Viver, ninguém vive, como é evidente. Levar a vida a cabo implicaria necessariamente estar todos os dias nela. E andar com a vida para trás e para a frente ninguém anda. Andamos para trás e para a frente, saindo e entrando na vida. Andamos para trás até ao que nunca fomos nem podemos ser, até aos outros que foram, a história, ou então andamos para trás até ao que fomos e fizemos, o nosso passado, quer seja na tentativa de o apagar, quer seja na tentativa de voltarmos a lá ficar. Tudo isto, meu amor, é tudo menos vida. Mas também andamos para a frente, atiramos a vida para a frente como no gesto que fazemos com a linha da cana de pesca, esperando que o peixe do futuro morda os nossos planos e nos traga a alegria do feito e o alívio no prato. Tudo isto, meu amor, é tudo menos vida. A vida, podemos pô-la em cima de uma mesa e analisar, pô-la diante dos nossos olhos e vê-la palpitar. A vida tem sangue e a sua cor é agora, não é ontem, nem é amanhã (repara, meu amor, que até a gramática nos indica que a cor da vida é agora). Não podemos estar na vida como um relógio que caiu ao chão e fica a dar as horas atrasadas. Também não podemos estar na vida como numa previsão tecnológica, ou apenas lógica, olhando para o céu do fim da tarde, desejando que o dia seguinte seja infirmado na cor das nuvens. Estar na vida, viver, é andar com ela para trás e para a frente, como um gato, que tantas vezes se deita para fazê-la descansar. Porque nada deve cansar mais do que andar para a frente e para trás com uma vida! Mas nós, os humanos, meu amor, andamos para a frente e para trás sozinhos, uns com os outros, de todas as maneiras e com tudo... Com tudo, menos com a vida. Talvez por isso mesmo, matamos com muito mais facilidade do que um gato o faz, com muito mais facilidade do que aquele cuja vida é matar. Meu amor, a vida não traz em si possibilidade de se pôr fim, mas nós trazemos.»

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Paulo José Miranda