quarta-feira, 1 de abril de 2015

É breve o esplendor das glicínias

Foto: josé alfredo almeida


É breve o esplendor das glicínias. Quando florescem, a cor e o perfume dos seus cachos são inesquecíveis. Mas o encantamento dura tão poucos dias que se torna preciosa e às vezes ténue a sua lembrança até ao ano seguinte. Embora tenham uma segunda floração em Junho, é uma pálida e distante imagem da primeira, que acontece no mês de Março. 

Talvez por isso Marguerite Yourcenar se lhes refira expressamente na apresentação do texto que escreveu em Seteais, sobre o sofrimento animal, os “devoradores de bifes” e a relação contraditória de afecto e de utilização entre alguns camponeses e os seus bichos. Um texto belíssimo que, segundo rezam as crónicas, espantou o público literato que a foi ouvir à Fundação Gulbenkian, pouco habituado àquele tipo de considerações sobre os nossos ditos irracionais irmãos.

Sempre invejo Maria Helena Vaz da Silva quando, relendo o texto publicado na “Raiz e Utopia”, as imagino conversando. Maria Helena pede uma apresentação do texto e Marguerite escreve: “Madame, je ne porte pas de chapeau et je n’ai pas l’habitude d’en écrire...” E depois diz do cheiro das glicínias que a rodeavam, do wagneriano Palácio da Pena espreitando por detrás do mozartiano cenário de Seteais, das recordações tristes e alegres que aquele local lhe trouxera, da marca que os sítios deixam no que lá se escreve. Da vida, do tempo e da sua passagem. Breves.

António Mega Ferreira descreveu Yourcenar como um “bloco de gelo”, numa crónica recente no PÚBLICO — talvez fosse, não sei. Quem sabe, embirrou com ele... mas há de facto algo nos escritos dessa mão habilíssima que me faz pensar que a impressão de Mega Ferreira tem fundamento. A suprema forma de emoção ao ler os seus livros sempre me pareceu ser a sua superior inteligência — e, é claro, a impressionante cultura clássica que tão bem utilizava nos seus escritos. A descrição dos pensamentos do imperador Adriano na sequência da morte de Antinoo têm a marca da emoção “pensada”, distanciada, como o relato da morte de Zenão no final da “Obra ao Negro” ou os textos reunidos em “Feux” — e sobretudo o prefácio deste último, que os apresenta como o produto de um luto literário por um amor perdido. Mas a sua maneira de falar sobre as plantas e os animais, ainda que possa corresponder a uma racionalidade franciscana, tem as marcas da emoção, talvez tanto mais profunda quanto “racionalizada”. A suprema inteligência não será a suprema emoção?

A cidade de Coimbra fica lindíssima quando se veste de lilás e os velhos troncos retorcidos das suas muitas glicínias voltam inesperadamente à vida, num sempre espantado e súbito júbilo de Primavera. Na casa onde vivi até aos sete anos de idade, na Avª Bissaya Barreto, havia um terraço térreo coberto por um caramanchão que tinha a glicínia mais bela que vi na minha vida — tornou-se para mim, é claro, o arquétipo de todas as outras que vou procurando ou encontrando por aí. No Convento do Varatojo, perto de Torres Vedras, há um claustro abraçado por dentro por uma glicínia cujos dois braços principais quase dão a volta inteira. Convenci-me de que a planta morreria quando os braços se tocassem — e desde aí receio lá entrar e verificar que tinha razão. Natália Correia, a quem contei esta premonição, levou-me totalmente a sério e ficou conversando comigo sobre a fatalidade da vida e da paixão, em versão botânica. Nos jardins do Buçaco há uma longa varanda de terra coberta por uma glicínia de cor menos vulgar que quando floresce parece uma descida do Céu.

Em Kew Gardens (jardim botânico próximo de Londres) existe um exemplar antiquíssimo, moldado por uma construção em redondo que lhe dá a aparência de um refúgio de Verão — assim como a Summer House em que o doutor Johnson meditava, escrevendo sobre a inutilidade e o absurdo da ópera (eis um prazer que ele perdeu na vida). Nas redondezas da localidade onde habito, designadamente na estrada que vai da Maçã (Sesimbra) a Palmela, há vários exemplares notáveis. Um dia, estando eu num grande e desmoralizado cansaço, lembrei-me de que era Março e pus-me a caminho, inventariando todas as glicínias que encontrava floridas. Ainda tenho os apontamentos que escrevi num caderninho — hoje, se calhar, fá-lo-ia de computador portátil na mão, que ironia —, mas o que sobretudo recordo é o efeito terapêutico de bem-estar e serenidade que aquele empreendimento aparentemente absurdo me trouxe.

É também por isso que eu sei que o deprimente alastramento do betão que nos oprime e a progressiva retirada das glicínias ou das suas várias irmãs terão efeitos graves na nossa saúde mental.

 Teresa Pizarro Beleza
(Março de 1999)

1 comentário:

  1. Um interessante , texto, que li , "consoladamente"..
    Palavras "perfumadas" ..
    Pequenas fragilidades "Primaveris"!!!
    Gostei imenso!
    .

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