Foto: josé alfredo almeida |
É
breve o esplendor das glicínias. Quando florescem, a cor e o perfume dos seus
cachos são inesquecíveis. Mas o encantamento dura tão poucos dias que se torna
preciosa e às vezes ténue a sua lembrança até ao ano seguinte. Embora tenham
uma segunda floração em Junho, é uma pálida e distante imagem da primeira, que
acontece no mês de Março.
Talvez por isso Marguerite Yourcenar se lhes refira
expressamente na apresentação do texto que escreveu em Seteais, sobre o
sofrimento animal, os “devoradores de bifes” e a relação contraditória de
afecto e de utilização entre alguns camponeses e os seus bichos. Um texto
belíssimo que, segundo rezam as crónicas, espantou o público literato que a
foi ouvir à Fundação Gulbenkian, pouco habituado àquele tipo de considerações
sobre os nossos ditos irracionais irmãos.
Sempre
invejo Maria Helena Vaz da Silva quando, relendo o texto publicado na “Raiz e
Utopia”, as imagino conversando. Maria Helena pede uma apresentação do texto e
Marguerite escreve: “Madame, je ne porte pas de chapeau et je n’ai pas
l’habitude d’en écrire...” E depois diz do cheiro das glicínias que a rodeavam,
do wagneriano Palácio da Pena espreitando por detrás do mozartiano cenário de
Seteais, das recordações tristes e alegres que aquele local lhe trouxera, da
marca que os sítios deixam no que lá se escreve. Da vida, do tempo e da sua
passagem. Breves.
António
Mega Ferreira descreveu Yourcenar como
um “bloco de gelo”, numa crónica recente no PÚBLICO — talvez fosse, não sei.
Quem sabe, embirrou com ele... mas há de facto algo nos escritos dessa mão
habilíssima que me faz pensar que a impressão de Mega Ferreira tem fundamento.
A suprema forma de emoção ao ler os seus livros sempre me pareceu ser a sua
superior inteligência — e, é claro, a impressionante cultura clássica que tão
bem utilizava nos seus escritos. A descrição dos pensamentos do imperador
Adriano na sequência da morte de Antinoo têm a marca da emoção “pensada”,
distanciada, como o relato da morte de Zenão no final da “Obra ao Negro” ou os
textos reunidos em “Feux” — e sobretudo o prefácio deste último, que os
apresenta como o produto de um luto literário por um amor perdido. Mas a sua
maneira de falar sobre as plantas e os animais, ainda que possa corresponder a
uma racionalidade franciscana, tem as marcas da emoção, talvez tanto mais
profunda quanto “racionalizada”. A suprema inteligência não será a suprema
emoção?
A
cidade de Coimbra
fica lindíssima quando se veste de lilás e os velhos troncos retorcidos das
suas muitas glicínias voltam inesperadamente à vida, num sempre espantado e
súbito júbilo de Primavera. Na casa onde vivi até aos sete anos de idade, na
Avª Bissaya Barreto, havia um terraço térreo coberto por um caramanchão que
tinha a glicínia mais bela que vi na minha vida — tornou-se para mim, é claro,
o arquétipo de todas as outras que vou procurando ou encontrando por aí. No
Convento do Varatojo, perto de Torres Vedras, há um claustro abraçado por
dentro por uma glicínia cujos dois braços principais quase dão a volta inteira. Convenci-me de que a planta morreria
quando os braços se tocassem — e desde aí receio lá entrar e verificar que
tinha razão. Natália Correia, a quem contei esta premonição, levou-me
totalmente a sério e ficou conversando comigo sobre a fatalidade da vida e da
paixão, em versão botânica. Nos jardins do Buçaco há uma longa varanda de terra
coberta por uma glicínia de cor menos vulgar que quando floresce parece uma
descida do Céu.
Em
Kew Gardens
(jardim botânico próximo de Londres) existe um exemplar antiquíssimo, moldado
por uma construção em redondo que lhe dá a aparência de um refúgio de Verão —
assim como a
Summer House em que o doutor Johnson meditava, escrevendo sobre a inutilidade e
o absurdo da ópera (eis um prazer que ele perdeu na vida). Nas redondezas da
localidade onde habito, designadamente na estrada que vai da Maçã (Sesimbra) a
Palmela, há vários exemplares notáveis. Um dia, estando eu num grande e
desmoralizado cansaço, lembrei-me de que era Março e pus-me a caminho,
inventariando todas as glicínias que encontrava floridas. Ainda tenho os apontamentos que
escrevi num caderninho — hoje, se calhar, fá-lo-ia de computador portátil na
mão, que ironia —, mas o que sobretudo recordo é o efeito terapêutico de
bem-estar e serenidade que aquele empreendimento aparentemente absurdo me
trouxe.
É
também por isso que eu sei que o deprimente alastramento do betão que nos
oprime e a progressiva retirada das glicínias ou das suas várias irmãs terão
efeitos graves na nossa saúde mental.
Teresa Pizarro Beleza
(Março de 1999)
Um interessante , texto, que li , "consoladamente"..
ResponderEliminarPalavras "perfumadas" ..
Pequenas fragilidades "Primaveris"!!!
Gostei imenso!
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