sábado, 29 de novembro de 2014

O Grande Alfaiate





João de Araújo Correia
Conto: O Grande Alfaiate
 In "Tempo Revolvido"

"Sim, ele tinha nascido naquela pequena cidade - metida numa cova, entre granitos de forma reboluda, pinheiros bravos e oliveiras comidas de ferrugem. Mas, aquela pequena cidade, ninho de fidalgos cheios de orgulho e plebeus subservientes com o sangue velho, estagnado em três solares decrépitos, mal o conhecia.Não se lhe dava de semelhante patrício. Era como se não existisse, porque se atrevera a ganhar fama, fora da sua terra, com o alfaiate. Homem de sangue vermelho como o coração das melancias, tinha-se elevado a umas alturas que destoavam da sua condição. Era um mecânico, embora de agulha e apesar de as irmãs, já velhinhas, trajarem um pouco à lei da fidalguia. Como beatas de grande observância e infalível assiduidade a todas as funções, adquiriram, como o cheiro do incenso, uma pontinha de distinção - contágio dos turíbulos, do oiro dos altares e de muita vela acesa em dias de festividade. Cobriam-se de vidrilhos e metiam as mãos, só os ossos, em espessos regalos.
O Mano, como lhe chamavam, puxando à rica ou à prosapiosa, vinha visitá-las uma vez por ano- por ocasião da grande festa de nossa Senhora do Monte. Mas, como ninguém fizese caso delw, mal saía à rua.Passava o tempo à janela, no andar cimeiro de vestusta moradia, comprada a um mercador de panos arruinado.
Sem sair da janela, que tinha na bandeira vidros multicores, o visitante anual, devoto da Senhora, observava tudo. Com óculos redondos como pratos da balança, parecia que pesava o poviléu festivo, que formigava em baixo, no rossio da cidadezinha, erguendo os varapaus, dando vivas e fazendo grande barulho com tocatas de rudes instrumentos, bombo e ferrinhos, amaciados com música de harmónio.
À hora da procissão, visita da Senhora à cidadezinha, que lhe beijava os pés durante o ano, o alfaiate regressava à infância. Depois de admirar o vestido, o manto e coroa da padroeira, pedia-lhe, curvando a fronte, mais um aninho de vida.
No rasto luminoso da Senhora, logo se lhe erguia do chão uma avantesma. Pesava-a com óculos redondos, condenando-a às profundas dos infernos.
Era um tal mostrengo! Representava, em pedra de cantaria, já denegrida, um soldado colossal, com a arma encostada ao peito e, em boca da arma, uma baioneta. Mas, tão horrendo de cara e aparato, que fazia chorar as criancinhas.
Que faz aqui este espantalho?, perguntava o alfaiate. Levem-no daqui e ponham-no acolá, à beira das coirelas. para espantar pardais. A minha terra, que diabo, merecia outra coisa. Eu, se fosse à Câmara, tirava-o daqui para as coirelas...Substituía-o por coisa mais bonita, como, por exemplo, um chafariz.
E o homem de óculos redondos já via o chafariz a pingar água, de taça em taça, como centro de mesa antigo, até molhar a toalha. Fazia, um pouco à toa, esta comparação.
Certo é que se punha a conversar com o chafariz futuro. Ia tirando do peito, pulga a pulga, as suas recordações, os seus amuos, os seus despeitos. E, na ponta, da unha, oferecia-os ao chafariz.
Era alfaiate na capital. Vestia os ministros, que lhe apertavam a mão e o elogiavam. No tempo do rei, chegou a talhar, para o príncipe real, uma casaca. Depois deste feito, prometeram-lhe o hábito de Cristo. Mas, veio a República, lá foi o hábito. O conselheiro, que lho prometera, sob palavra de honra, disse-lhe assim: agora, menino, governa-te com a canalha.
Mas, a canalha não era bem canalha. Eram os novos ministros, que davam lições de elegância ou, a pouco e pouco, a iam adquirindo. Eram os deputados, que desciam das aldeias mal vestidos, e ele transformava, num minuto, em figurinos. Era o corpo diplomático...Eram os banqueiros. Era, enfim, a nova aristocracia.
Ele enroupava-a como se fosse velha, cheia de musgo, nascida para bailes, recepções e estreias de teatro lírico. Não queria perder, com facilidades próprias de revolução, a fama que adquirira de primeira tesoura do país.
(...)
De ano para ano, tantas vezes olhou para o tremendo busto do soldado, que deixou de o ver. No lugar do corpanzil de trincheira, com a espingarda enconstada ao peito, viu-se a si próprio, com a fita estendida no acto de lavrar medidas.
E comandava. Dizia-lhes: cuidado com a cava. Dá-lhe mais peito, homem!Bem vês é obra de cinta, para o Senhor Conselheiro. Se lhe  não dás peito, a casaca sobe. O Senhor Conselheiro vai a palácio ridículo. Em vez de casaca, levará nos ombros mochila de galucho.
De tanto se ver, no lugar do soldado, começou a ser feliz, cada vez mais feliz de ano para ano.Disse às irmãs que eram horas de receber como esposa a velha actriz - ainda bonita.
-Quero que veja a estátua!
-Que estátua?
-A minha, manas! Sempre na igreja, aposto que ainda a não viram. Pois, olhem que está bonita. E aquela relva, tão macia...Já viram, manas?
Areou-se-lhe o juízo. Mas, passou a alfaiataria sem impedimentos. Casou com a actriz, vendeu a quinta do Sul e veio acabar os dias à cidade natal - escondida entre pinheiros bravos, reboludos penedos de granito e oliveiras comidas de ferrugem. Sem sair da janela, que era ali o seu poiso, debruçava-se para o rossio e deixava cair, sobre o passeio, um fio de baba glorioso.
Comia bem e bebia melhor. Arredondou e coloriu a face. Quebrou os óculos. Disse que não precisava deles para ver a estátua. A mulher e as irmãs, chorosas de o ver assim, murmuravam: que pena...
-Que pena? Eu sou o homem mais feliz do mundo. A Câmara, afinal, cumpriu a obrigação. Mas, não sei bem como foi...
Num dia de procissão, com um olho posto na estátua, outro na Senhora, acabou."

João de Araújo Correia


Leitura

Deste revolver do tempo é bom exemplo "O  Grande Alfaiate", que é também um conto exemplar da ligação à terra, aqui em antífrase de amor-ódio, que se afasta do bucolismo romântico do casario idílico ou do descampado sentimental, da lavoura popular e da paisagística de ressonância anímica. Num ambiente de povoação, que é o da terra humanamente organizada, mantêm-se neste texto a tensão, corrente no autor, entre a linearidade da história que se conta  e o instantâneo de flagrantes episódios, tensão essa que, por se manifestar estabilizada, caracteriza as personagens de um modo afim do dos impressionistas, em laivos descritos de fugaz sugestão, de jeitos pessoais, falas e atitudes, que condensam num singular momento (aqui, o de um homem à janela a contemplar uma estátua) toda a existência de ascensão social e de ânsia pelo respectivo reconhecimento.
Trata-se de um alfaiate  que deixou a sua terra natal, no Norte, para ir fazer carreira em Lisboa, e que nela tem êxito, vindo anualmente visitar as irmãs ao ninho provinciano, mas decepcionando-se ante a indiferença que lhe manifestam os seus conterrâneos, que não mostram considerá-lo, acha ele, de acordo com o estatuto a que o sucesso profissional obtido o guindou.
(...)
E "num dia de procissão, com um olho posto na estátua, outro na Senhora, acabou"; o destino do alfaiate cumpriu-se. Mas o talento do contista faz desta conclusão abrupta e seca, na sua relação com a intensidade de paroxismos anteriores, uma extinção de voz que anula a mescla da sua narrativa com o discurso interior da personagem, reduzindo aqui o texto a simples registo, pois a vida deixou de existir. Mas esse registo, com a sinalização do olhar "na estátua" e "na Senhora", tornou-se numa espécie de gloria in excelsis, dada em paz e serenidade, en(m...)fim, representando o final do sofrimento, o da vida e o do conto."

Maria Alzira Seixo
Universidade de Lisboa 

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